5 milhões de paulistanos passarão virada do ano sem água
Grande imprensa descobre o Alto Tietê, que chega aos seus últimos dias
A não ser que 1) tenhamos chuvas absolutamente históricas ou 2) os técnicos da SABESP apresentem uma solução mágica (indisponível até o presente momento), quase 5 milhões de pessoas passarão a virada de ano sem água na região metropolitana de São Paulo em pouco mais de 20 dias. Como nem a primeira, nem a segunda possibilidade parecem factíveis, soa a cada instante mais provável a conjectura apresentada acima, hipótese que apresentei, pela primeira vez, em um texto publicado aqui no blog ainda em 18 de Julho – Um diagnóstico sobre a dramática situação do Sistema Alto Tietê – há praticamente 5 meses, portanto.
Se a cobertura midiática sobre a crise hídrica já pode, em si, ser classificada como sofrível, a diferença no tratamento dado à situação do Cantareira quando comparado ao Alto Tietê é praticamente inexplicável (não por acaso, as fotos utilizadas em reportagem da Folha de hoje – para ilustrar a situação do Alto Tietê são de Julho!). Hoje, pela primeira vez, os grandes veículos de comunicação destacaram, como prioridade, o momento crítico enfrentado pelo segundo mais importante sistema de abastecimento de água de São Paulo. E, pela primeira vez, também aventaram a hipótese de que ele “pode colapsar”.
Uma primeira questão interessante, ao analisarmos o comportamento da mídia, é o desencontro de informações, sem réplicas ou críticas, que são produzidas pelos jornalistas. Na notícia do G1, afirma-se que a SABESP fala sobre a existência de uma reserva técnica, sem especificar seu tamanho ou o início de seu bombeamento. Já na notícia do R7 , coloca-se no título da própria matéria que o sistema não possui o tal volume morto. Para quem estuda o tema da transparência, o fenômeno do desencontro não pode ser catalogado de outra forma: trata-se de um case clássico de opacidade governamental. A gestão Alckmin, mais uma vez, demonstra o seu absoluto desinteresse em informar o cidadão, em produzir uma estratégia adequada de comunicação em situação crítica.
A guerra pela água está apenas começando, mas tudo o que o governo estadual diz é que não haverá problemas, e que a solução do bônus pela redução do consumo está sendo uma medida eficaz. Nada mais longe da realidade. Quando combinamos esse comportamento com a práxis conservadora da mídia, produz-se uma bomba-relógio, cada vez mais perto de explodir. Essa bomba mistura desinformação, ausência de incentivos colaborativos, crescente sensação de desespero e, é claro, a proximidade do esgotamento fático dos reservatórios. E nada, absolutamente nada, está no horizonte para mitigar quaisquer desses componentes trágicos para a população paulista.
A situação no Alto Tietê é tão grave, mas tão grave, que não é mais possível calcularmos em meses, mas sim em dias, a perspectiva de seu esgotamento. Para que tenham uma ideia, a represa de Biritiba-Mirim – aquela que começou a ter o seu volume morto extraído ainda na primeira semana de Outubro (o que foi confirmado pela SABESP apenas em Novembro) – está em um nível tão baixo, mas tão baixo, que sequer o Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê é capaz de especificar o quanto de água ainda restaria nesse reservatório.
Em Julho, após analisar esse documento, produzimos uma planilha (que foi compartilhada aqui no blog e que tem sido, até mesmo, utilizada por técnicos interessados na questão) a partir de uma regressão polinomial para podermos calcular o quanto de água ainda restava disponível em cada uma das represas do Alto Tietê – considerando-se os dados atualizados a cada 10 minutos no Sistema de Alerta de Inundações, o SAISP. No Plano supramencionado, são indicados alguns pontos-chaves de cada um dos reservatórios (cotas mínimas operacionais, cotas máximas, valores intermediários e alguns valores abaixo dos mínimos, em alguns casos). Vale dizer que a precisão das informações é bem inferior ao observado para o Cantareira, já que neste caso um dos compromissos cobrados pela ANA, na Outorga de 2004, era justamente a atualização das curvas cota x volume de cada um dos reservatórios desse sistema.
No caso de Biritiba, sabemos que o mínimo operacional se encontrava na cota 752,5 metros, quando então a represa se encontraria, ainda, com 25,84 bilhões de litros. A cota mínima apresentada no Plano é a de 750 metros, quando então restariam 15,37 bilhões de litros de água. Vale dizer que, em Julho, o DAEE teria autorizado a SABESP a retirar 10 bilhões de litros desse reservatório. E, em novembro, quando observamos aquela subida repentina do nível do Alto Tietê de 6,5% para 8,9%, vimos a imprensa noticiar, sem qualquer juízo crítico, que as chuvas teriam sido responsáveis por tal elevação, em apenas um dia. Depois, contudo, o governo afirmou que 1,8 pontos percentuais dessa subida teriam se dado em razão da adição dessa nova parcela – o que configuraria, acima de tudo, uma falta informação, levando-se em conta que parte considerável dessa fatia já havia sido consumida. Mas boa parte da mídia se “esqueceu” de noticiar essa correção, ao ponto de, agora, ficar em dúvida sobre a existência, ou não, se um volume morto extraível no Alto Tietê.
E em que nível se encontra, afinal, a represa de Biritiba? Neste momento, ela se aproxima da impressionante cota 748. Para sabermos o quanto, em termos nominais, ainda resta de água, temos de voltar às equações. Descobrimos que o “zero absoluto” desse reservatório se encontra na cota 744. Pela análise dos dados, chegamos à conclusão de que sobram, neste momento, cerca de 9 bilhões de litros de água. Por dia, a represa “perde” mais de 400 milhões de litros, algo entre 15 e 20 cm. Obviamente, quanto mais fundo se vai, maior é a diminuição das cotas, já que as represas tendem a possuir o formato “funil”. E, quanto mais fundo se vai, mais difícil se é de extrair os volumes restantes. Não é um exagero, por exemplo, pensarmos que o último metro de água não possa ser retirado. E não é pessimismo, portanto, constatarmos que, na verdade, algo como apenas 7 bilhões de litros poderão ser transferidos de Biritiba. Isso dá não mais do que 18 dias. O curioso é que, portanto, a SABESP já retirou algo como 160% do volume morto autorizado para essa represa. Logo, ela não terá condições sequer de atender às especificações da outorga com relação às afluências para os rios a montante, de forma que se corre o risco premente de inviabilizar o abastecimento das cidades que captam a água dessa forma. E aí, nenhuma nota do DAEE a respeito, nenhuma cobrança pública da SABESP, nenhuma estratégia alternativa a ser implementada?
E o que acontece a partir daí? Simples. Biritiba é a “represa do meio”, unindo Ponte Nova e Paraitinga aos reservatórios de Jundiaí e Taiaçupeba. Ela é central, tanto de um ponto de vista geográfico como hidrológico. Com seu completo esvaziamento, ou é cessada a comunicação com as represas anteriores, ou, mais provável, passa-se a depender consideravelmente mais das contribuições dessas duas para que os 12 m³/s que precisam chegar até a população possam vir a ser produzidos. O problema é que a situação de todas as demais represas também é absolutamente crítica.
Paraitinga, por exemplo, está, em tese, com cerca de 22% de sua capacidade. Parece bastante, mas o seu comportamento ao longo dos últimos meses nos mostra que há dificuldades operacionais significativas para que seja possível transferir o pouco de água que resta. Pouco, sim, porque são apenas 8 bilhões de litros. Um agravante – que talvez explique a dificuldade do seu funcionamento por gravidade – é o de que ela, definitivamente, não possui volume morto. Logo, ela se encontra em uma situação de quase colapso.
Ponte Nova é o maior dos reservatórios do Sistema Alto Tietê. Em volume útil, possui 290 hm³ disponíveis, quase 58% do total da capacidade dessas 5 represas juntas. No momento, no entanto, ela está em situação incrivelmente dramática. Restam, acima do nível operacional, não mais do que 4 bilhões de litros, menos de 2% de seu nível máximo, e algo como 30 cm de água acima dos níveis mínimos. E, pelo menos desde Outubro, a SABESP vem dependendo quase que exclusivamente do volume morto de Biritiba e do volume operacional restante de Ponte Nova para manter funcional o Alto Tietê. No Plano supracitado, é dito que, em tese, ainda existiriam cerca de 43 bilhões de litros de água situados abaixo da cota mínima (755 metros). No entanto, os estudos feitos pela SABESP, ainda em Julho deste ano, ponderavam que apenas os volumes mortos de Biritiba e da represa Jundiaí poderiam ser captados. Como Ponte Nova tem perdido cerca de 400 milhões de litros ao dia, não é pessimismo considerar, então, que em apenas 10 dias ela deixará de transferir água adequadamente. E o que ocorre a partir daí?
No final da tarde, por sinal, tivemos a notícia de que Alckmin “já” pediu autorização para explorar o volume morto de Ponte Nova. Já? Mesmo? Quanta tempestividade. Se o DAEE autorizar amanhã, as obras ficarão prontas até que o volume útil se esgote (os 10 dias aventados acima)? Provavelmente, não, levando-se em conta que processos similares tomaram 2 meses da SABESP. E mesmo que fique, o que representam 40 bilhões de litros, se plenamente extraíveis, caso não chova? Um mês e meio, quem sabe? E depois?
Sobram, então, as represas Jundiaí e Taiaçupeba. Desde praticamente o mês de Julho, Jundiaí se encontra no mesmo nível crítico. Equilibrando-se em uma corda bamba, a SABESP tem buscado transferir a água de Biritiba até Jundiaí, e de Jundiaí até Taiaçupeba sem reduzir ainda mais o nível da segunda. E por que razão? Simples. Jundiaí não tem sequer 1 bilhão de litros de água acima do zero operacional. Sendo mais específico, são 7 cm de água, e nada mais. E, se levarmos em conta uma reportagem do G1 de Novembro, parece que a SABESP desistiu de buscar captar o volume morto dessa represa.
Talvez como parte desse contexto desesperador, a SABESP buscou preservar a represa de Taiaçupeba, a última por onde passa a água até chegar à estação de tratamento, de mesmo nome. Após ter chegado a ter menos de 6 bilhões de litros, hoje possui quase 10. Todavia, no caso de colapso total das demais represas, esse volume não duraria mais do que 12 dias. E, como vimos, o caos total, em breve, está absolutamente na ordem do dia. Se a medida mais efetiva do Governo Alckmin é o de contar com “as chuvas de Dezembro”, então logo passaremos a calcular o completo esgotamento do Alto Tietê em horas. E sem avisos governamentais com qualquer antecedência.
Alckmin parece ter tido aulas bastante tortuosas sobre o que é ser um estadista. Ou, pior, as aulas podem ter sido boas, mas ele não compreendeu o seu sentido. Em algum momento, entendeu e reproduziu a ideia de que enfrentar uma das situações mais complicadas da história paulista, a qual exigiria liderança, medidas drásticas e criatividade, na verdade seria lidada a partir de uma aparente tranquilidade – que expressa, na verdade, um terrível misto de apatia, provincianismo no tratamento do problema e pouquíssima abertura democrática. Pois essa postura de quem nega a gravidade das coisas e afirma estar no controle da situação, típica de heróis burlescos ficcionais, na realidade nos transmite a ideia de que ele possui um imenso desapreço pela cidadania diante dessa verve de que “a gestão é minha e eu só aviso o que estiver fazendo se os jornais pressionarem um pouco mais”.
Longe de esboçar estadismo, Alckmin nos ensina sobre o que é o “populismo neoliberal”: políticas públicas com transparência débil, parcas oportunidades de controle social, foco privatista, prioridade ao lucro mesmo nas emergências, discurso chocho, com sabor de chuchu. A fórmula, apesar de asséptica, é altamente populista, já que se volta meramente à sobrevivência política do mandatário. A novidade conceitual está em seu viés neoliberal, o qual busca criar uma “cola” direta entre governante e indivíduo (e não um corpo social), o que é viabilizado a partir da mítica retórica do bônus, que retoma o homus economicus dos velhos manuais de microeconomia. Todo esse caldo pode até funcionar, de um ponto de vista eleitoral, na tão conservadora São Paulo. Mas os resultados práticos desse modelo de gestão, a cada dia, vão nos mostrando o equívoco monumental que representam, na medida em que, reiteradamente, expressam a mais primária negação a respeito da profundidade – sem trocadilho – da tragédia hídrica vivida por São Paulo.
Do blog do Nassif