Política externa: o que está em jogo na eleição?

Barack Obama, o presidente dos Estados Unidos, em 30 de setembro: a relação com a Casa Branca divide os candidatos ao Planalto

Enquanto o programa do PT prevê um Brasil altivo, PSB e PSDB querem o País gravitando ao redor dos Estados Unidos. Por Sebastião Velasco

As cartas estão na mesa. Mais do que em 2010, mais do que em 2006 – e provavelmente bem mais do que em qualquer outra depois do longo recesso do pós-1964 – as diferenças programáticas no tema da política externa estão muito claras na campanha presidencial deste ano.

A posição da candidatura oficial não reserva surpresas: com as adaptações necessárias para ajustar-se aos dados sempre cambiantes da conjuntura internacional, com esta ou aquela correção de rumo, o programa de Dilma não se distingue essencialmente daquele que vem pautando, desde o início, as ações de seu governo. O qual, por sua vez, segue pelo caminho aberto oito anos antes pela política de Lula, “ativa e altiva” na fórmula feliz do ministro Celso Amorim.

O que há de novo é o espaço dedicado ao tema da política externa nos pronunciamentos oficiais da oposição, e os pontos de vistas expostos nesses documentos. Deixando de lado artigos de circunstância e entrevistas, são dois os documentos mais importantes: o Programa da coligação “Unidos pelo Brasil” (Marina-Beto Albuquerque), e uma longa entrevista publicada pela revista Política Externa, a que responderam os dois candidatos de oposição (na época, Aécio e Eduardo Campos). As respostas de Dilma foram publicadas posteriormente, em número que acaba de sair.

Chama atenção a grande semelhança entre o programa das duas candidaturas. Elas coincidem em sua retórica – ao se apresentarem como restauradoras da autonomia do Itamaraty, supostamente sacrificada aos interesses e aos preconceitos ideológicos do partido dominante. Convergem na defesa da adesão brasileira aos grandes acordos comerciais ora em negociação sob patrocínio dos Estados Unidos com países latino-americanos e asiáticos (a Parceria Comercial Trans-pacífica), com a União Europeia (o Acordo Transatlântico de Comércio e Investimento), e com ambos: o Acordo sobre Comércio em Serviços. Fazem coro na crítica ao estado presente do Mercosul, e na proposta de flexibilização de suas regras para dar margem de liberdade maior ao Brasil na condução de sua política de comércio exterior. Estão afinadas também na defesa de uma aproximação maior com os Estados Unidos e de uma postura abertamente crítica face a (alguns) governos apontados como responsáveis por violações de direitos humanos.

No plano mais geral, ambos os programas contemplam a transformação do sistema internacional, no sentido de uma distribuição mais equilibrada de poder, e advogam para a diplomacia brasileira o exercício de um papel construtivo no redesenho de seus mecanismos de governança. Apesar dessas e outras similitudes, há algumas diferenças entre as duas propostas, como veremos logo a seguir.

Mas seguir é preciso? Não seria melhor indicar logo essas diferenças, de resto adjetivas, e deixar aos eleitores – a essa altura bem instruídos – o encargo de escolher entre os programas, de acordo com suas preferências e seu juízo?

Seria assim se os programas políticos fossem translúcidos. Mas não são. Usualmente, eles ocultam, tanto quanto revelam – e quando prestamos atenção a esse jogo de claro escuro vemos que eles informam mais do que os seus autores imaginavam.

Tome-se, por exemplo, o caso da integração regional e a adesão aos acordos comerciais promovidos pelos Estados Unidos. Embora avaliem muito criticamente o Mercosul, ambas as candidaturas falam em reformulá-lo, sob liderança brasileira, para lhe dar maior flexibilidade e, no final das contas, revigorá-lo. Ora, do ponto de vista estritamente comercial, é evidente que a celebração, com economias desenvolvidas, de acordos com cláusula de eliminação de tarifas retira a razão de ser do Mercosul. O leitor está autorizado, portanto, a depreciar os protestos de compromisso com a integração regional. Fazendo eco a anos de propaganda negativa da grande imprensa, a opção preferencial dos dois programas é pelos ricos.

Mas os acordos em questão não se restringem a remover barreiras tarifárias, nem é este o seu maior objetivo. Do contrário, não haveria muito o quê negociar entre a Europa e os Estados Unidos, pois suas tarifas já são muito reduzidas. O que esses acordos pretendem é harmonizar regras para uma gama enorme de temas tradicionalmente objeto de regulamentação pelos Estados nacionais: serviços, investimento estrangeiro, propriedade intelectual, compras governamentais, para citar apenas alguns.

Ao fazer isso, esses acordos não inovam. No final do século passado, vários desses temas passaram a ser disciplinados por regras estabelecidas em negociação multilateral, que desde então vêm sendo aplicadas pela OMC. O meio natural para reformá-las seria também a negociação multilateral no âmbito desta organização. É a inexistência de consenso sobre o que mudar, e sobre própria direção da mudança que leva os Estados Unidos e seus aliados a optarem pelo caminho da negociação secreta entre “iguais”.

É desnecessário insistir no que significa essa escolha do ponto de vista do sistema multilateral de comércio. O argumento para aderir a esses acordos deixa isso muito claro: “não podemos correr o risco de ficar de fora, e sermos obrigados a nos sujeitar depois a normas decididas por outrem”. O suposto é claro: os outros definirão novas regras, independentemente de nossa vontade – e, no caso, o coletivo indicado pelo pronome vai muito além de nós, brasileiros. Se a regra de ouro do regime em vigor é a mudança por consenso (ou, em última instância, pelo voto da maioria), o que prevalece nos referidos acordos é a lógica excludente da oligarquia: os pares decidem; aos demais resta a opção entre aceitar o que foi decidido, ou ficar à margem.

Agora, o que há de tão especial nessas “novas regras”? Seus defensores usam termos sedutores quando se referem a elas. Seriam mais “ambiciosas”, ou mais “avançadas” – quem vai insistir em manter regras “modestas” e “atrasadas”? Mas há um ardil nessa linguagem: esses adjetivos não se aplicam com propriedade às regras, mas aos interesses sociais que as promovem e são por elas beneficiados. Em detrimento de outros interesses, naturalmente, mas sobre isso é melhor não dizer nada.

Os dois programas apresentam tais mudanças como respostas aos imperativos da economia industrial, que se organizaria hoje em cadeias produtivas globais. Nesse contexto, as normas precisariam ser harmonizadas, sob pena de entravar a atividade das firmas.  Quando se abre a caixa preta (o que acontece por vezes, quando o segredo que cerca a negociação desses acordos é quebrado por um bisbilhoteiro mal intencionado qualquer), a desconfiança nos assalta. As regras propostas conferem amplas prerrogativas às corporações multinacionais e limitam severamente os graus de liberdade dos poderes públicos. E quando vemos que países participam das negociações desses acordos – nenhum dos BRICS, para início de conversa –, e quem fica fora delas, concluímos com facilidade: o que se pretende é a integração subordinada nessas ditas cadeias – que funcionariam efetivamente como tais, liames aprisionando os anseios de desenvolvimento econômico e social de nosso País.

Até aqui, os dois programas vão de mãos dadas. Mas em alguns momentos eles se separam (não muito, é verdade). Os documentos da chapa encabeçada por Marina são bem mais incisivos na condenação a governos acusados de violar direitos humanos – por coincidência, todos eles na lista negra dos Estados Unidos –, mas não dizem uma palavra sobre as crises humanitárias provocadas pelas intervenções militares da superpotência e seus aliados, ou sobre as violações crônicas que prevalecem em muitos de seus Estados clientes.

E há a denúncia do princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, que sempre orientou o Brasil nas negociações sobre o clima. Essa noção serviria de escudo para os novos grandes poluidores globais, e o governo a estaria usando para fugir às nossas obrigações como membros solidários da humanidade, ameaçada pelo desastre que ronda o nosso planeta. Imbuído desse espírito generoso, no capítulo dedicado à matéria, o programa de Marina estabelece metas “ambiciosas” para o Brasil em futuro próximo e distante: redução das emissões de CO2 per capita em 70% até 2050. O fato de os Estados Unidos responderem, sozinhos, por cerca de 17 % das emissões globais de carbono, enquanto a contribuição do Brasil não passa de 1,5%, não conta. Somos todos responsáveis, e temos de contribuir igualmente na resolução do problema.

Chegamos, enfim, ao tema da multipolaridade. Como se sabe, o conceito é central na política exterior do Brasil desde o início do governo Lula. Àquela época, o mantra nos estudos em Relações Internacionais era a unipolaridade. No mundo do pós Guerra-Fria haveria apenas uma única hiperpotência, um único pólo. E daí a falar em império global era um passo – que muitos deram celeremente, durante os preparativos da invasão do Iraque, e pouco depois. Como se sabe também, o Brasil se opôs a essa operação militar, pela voz de seu presidente Lula – para grande escândalo dos comentaristas que integram o que poderíamos denominar de “Partido Americano do Brasil”.

Outros tempos, outras palavras. Agora, a fórmula “um mundo multipolar” entrou na moda. Mas entre o significado dela no discurso oficial e no léxico da oposição há uma diferença flagrante. Para o primeiro, ao promover a integração sul-americana o Brasil contribui para a constituição de um pólo a mais no sistema internacional; para o segundo, o sistema tende a assistir à afirmação de outros pólos de poder, mas o Brasil deve continuar gravitando na órbita do mesmo astro de sempre.

Por Sebastião Velasco da Carta Capital