Diretor-geral da OIT diz que é inegável o progresso do Brasil

Nascido na cidade operária de Liverpool, no interior da Inglaterra, Guy Ryder, aos 57 anos de idade, é um cidadão com títulos surpreendentes. Ativista sindical na juventude, ele tem um diploma de ciências políticas por Cambridge, uma das mais respeitadas universidades do mundo. Em outubro de 2012, após uma carreira em organismos internacionais, Guy Ryder tornou-se o primeiro sindicalista a assumir a direção-geral da Organização Internacional do Trabalho nos 94 anos da entidade, numa mobilização que envolveu centrais de vários países, inclusive as brasileiras CUT, Força Sindical e UGT. Formada por representantes de governos, empresas e sindicatos, na semana passada a OIT reuniu, em Brasília, 1.300 delegados de mais de 130 países, em sua III Conferência sobre Trabalho Infantil. Num dos intervalos do evento, Guy Ryder falou à ISTOÉ.

“Os avanços no combate à pobreza foram enormes. Hoje, o
Bolsa Família é um programa conhecido no mundo inteiro”

“François Hollande teve um papel positivo. Convocou
centrais sindicais e patronais e acabou conseguindo
um acordo que garante a proteção ao emprego”

Istoé – É possível esperar alguma melhora no desemprego e nos salários nos próximos anos? 

Guy Ryder – A situação do mundo do trabalho não evolui desde 2008. Temos mais de 200 milhões de desempregados no mundo desde então e não se vê uma perspectiva de melhora importante. O preocupante é que agora até se fala numa recuperação econômica  em alguns países, mas é uma recuperação sem emprego. O desemprego continua aumentando, ainda que se possa notar uma pequena evolução. Pelo menos agora já se admite que o problema existe e se fala sobre ele. Na última reunião do G-20, o tema central foi emprego e crescimento. Falou-se de salário mínimo, emprego e negociação coletiva. 

Istoé – Neste ambiente, muitos analistas dizem que o Brasil é um caso à parte. O sr. concorda? 

Guy Ryder – O Brasil é um caso que se destaca. Nos últimos anos, teve um crescimento sólido, às vezes impressionante. Mesmo que esse crescimento tenha diminuído, ficaram frutos importantes. A partir de uma política deliberada por parte do governo, aproveitou-se o bom momento econômico para promover objetivos sociais. Para empregar a lógica da OIT, dizemos que o Brasil conseguiu traduzir o progresso econômico em justiça social. Os avanços no combate à pobreza foram enormes. A grande desigualdade é um problema histórico, que todos conhecem no Brasil, e nesse terreno foram feitos avanços importantes. Hoje, o Bolsa Família é um programa conhecido no mundo inteiro. Claro que muitos problemas subsistem, mas seria difícil negar o progresso. 

Istoé – Referindo-se à Europa, o sr. já disse, certa vez, que o desemprego alto poderia provocar revoltas semelhantes à Primavera Árabe. 

Guy Ryder – Sempre que o desemprego aumenta e a desigualdade se acelera, surge essa questão: será que a estabilidade social vai ficar ameaçada? Na verdade, esta não é a pergunta correta. Não é preciso esperar por uma ruptura para se tomar medidas necessárias a fim de que possa ser evitada. É melhor agir antes. Mas em alguns países, ao menos no sul da Europa, existe um risco real de ruptura da ordem. O caso mais evidente é o da Grécia, onde uma crise social gravíssima produziu até uma ascensão forte da extrema direita, inclusive com a formação de um partido nazista que acaba de ser colocado na ilegalidade. 

Istoé – Se o sr. fosse um cidadão grego, o que estaria fazendo em 2013? 

Guy Ryder – Talvez eu estivesse fazendo como muitos cidadãos gregos. Convencidos de que se encontram numa situação sem salvação, eles estão mudando de país para tentar a sorte em vários lugares, inclusive na Austrália. É compreensível, mas não é a melhor reação. A atitude adequada é ficar no país, se associar a outros cidadãos e procurar uma saída conjunta. É difícil, mas não há outro caminho. Vivemos uma situa-ção difícil em todo o mundo.

Istoé – Mesmo no mundo desenvolvido? 

Guy Ryder – Nos Estados Unidos, os problemas sociais se tornaram tão sérios que ameaçam a economia. As estatísticas  recentes mostram que, hoje,  a desigualdade entre os cidadãos chegou ao mesmo nível de 1928. A questão, agora, é evitar o que aconteceu em 1929, porque nós sabemos o que aconteceu então.

Istoé – Na década de 1930, os Estados Unidos conseguiram vencer a depressão através da política do New Deal, de Franklin Roosevelt. O sr. acha que falta um líder como Roosevelt para dirigir a recuperação americana e mundial? 

Guy Ryder – Vivemos uma crise internacional e ela deve ser resolvida internacionalmente. Para isso o G-20 tem um papel muito importante. Entre 2008 e 2009, o G-20 tomou medidas necessárias. E é até curioso, porque naquele momento nós tínhamos George W. Bush na Presidência dos Estados Unidos, e o (Nicolas) Sarkozy, na França. Eles definiram políticas que permitiram a recuperação do setor financeiro, algo que precisava ser feito naquele momento. O problema é que isso durou pouco. Quando se garantiu a salvação do setor financeiro, não se fez mais nada. 

Istoé – O que deveria ser feito, agora? 

Guy Ryder – Como acontecia nos anos 1930, a economia tem hoje um problema de demanda. As pessoas não têm dinheiro para consumir. Sem consumo, não há produção e não se criam empregos. Seria preciso colocar recursos financeiros na economia real. Seria preciso provocar esse consumo. É complicado porque enfrentamos uma situação de demanda que é anterior à crise. Em 30 anos a produtividade do trabalho só aumentou, mas os salários não acompanharam essa elevação. Esse é o grande desequilíbrio.

Istoé – Como o sr. avalia a vitória de Angela Merkel nas eleições alemãs? 

Guy Ryder – Foi a crônica de uma vitória anunciada. O desemprego na Alemanha é muito baixo, em torno de 5%. É natural que os alemães considerem que ela maneja a economia muito bem, ao contrário do que acontece com outros países na Europa. Com desemprego alto, salários em queda, vários governos caíram. Merkel foi uma exceção absolutamente lógica.  

Istoé – Mas é uma situação diferente da da França, por exemplo. 

Guy Ryder – Considero que o primeiro ministro da França, François Hollande, teve um papel positivo. Tomou posse sob uma pressão muito grande para mudar as regras do mercado de trabalho. Convocou centrais sindicais e patronais e acabou conseguindo um acordo que garante a proteção ao emprego.

Istoé – Existe, no Brasil, uma discussão muito grande em torno da flexibilização das leis trabalhistas. No Congresso brasileiro, debate-se um projeto de terceirização de toda a mão de obra. Como o sr. vê esta questão? 

Guy Ryder – Nós consideramos que na América Latina e também no Brasil existe um problema anterior, que é a informalidade, condição de milhões de trabalhadores; quem sabe 48% de todos os assalariados do continente. Eles não têm direito algum. A informalidade, deste ponto de vista, é a flexibilização em estado absoluto. O debate sobre a flexibilização, que diz respeito à diminuição de direitos, é o verdadeiro debate dos últimos 30 anos. Com a globalização, os países enfrentaram pressões para serem mais competitivos, e a flexibilização apareceu como a saída para todo mundo. Mas, depois da crise de 2008, todos perceberam que não era assim. Os estudiosos de esquerda, mas também de centro e de direita, perceberam que se avançou demais na flexibilização. Acreditava-se que o emprego seria garantido para quem fizesse a flexibilização, mas não foi isso o que aconteceu. 

Istoé – No período de maior crescimento econômico, no Brasil, tivemos um aumento na formalização e não da flexibilização… 

Guy Ryder – Na minha opinião, o debate segue em aberto. Não sou favorável à manutenção de regras totalmente rígidas no mercado do trabalho. Elas também podem ser prejudiciais. Mas devemos evitar qualquer teoria simplista. O mundo real não funciona assim. É preciso encontrar equilíbrios, que passam pelo diálogo social. Vivemos em sociedades que perderam essa capacidade de diálogo, em especial na Europa. E isso precisa ser retomado. O que todos queremos, de qualquer maneira, são empregos decentes, que permitam que todas as pessoas possam sobreviver de seu trabalho com dignidade. Não queremos sociedades movidas pela especulação. Alguém pode ser contra isso? 

Istoé – Muitos estudiosos dizem que os sindicatos são entidades que pertencem a outra época das sociedades humanas. O sr. concorda? 

Guy Ryder – Nós sabemos que a sociedade mudou. Somos mais individualistas. Isso tem a ver com muita coisa, até com a informática. Os jovens se comunicam através de computadores e não comparecem a reuniões. Essa é uma grande diferença. Essas mudanças afetam todas as organizações coletivas, a começar pelos partidos políticos. Então é claro que as pessoas frequentam menos sindicatos hoje do que ontem. Mas daí a dizer que eles se tornaram órgãos do passado não corresponde à realidade. Quando as pessoas enfrentam uma crise, se voltam para os sindicatos. Foi através deles que a população europeia deu respostas contra as políticas de austeridade, cobrou mudanças, fez greves.

Istoé – O sr. atuava no movimento sindical quando Margaret Thatcher enfrentou uma greve dos mineiros, que teve consequências históricas.  

Guy Ryder – Foi um momento duríssimo do sindicato e da história da sociedade britânica. Margaret Thatcher modificou as regras de negociações coletivas, o direito de greve, sequestrou os fundos de determinados sindicatos. Foi um momento muito complicado e difícil. Pode ser incômodo dizer isso, mas é preciso reconhecer. Em 1979, quando a Thatcher venceu as eleições pela primeira vez, ela teve mais apoio entre os sindicatos do que entre os políticos trabalhistas.

Istoé – Por quê? 

Guy Ryder – Nós tivemos crises muito graves no Reino Unido nos anos anteriores à vitória de Thatcher. Eram conflitos permanentes. Creio que as pessoas começaram a acreditar que esta situação estava prejudicando a sociedade britânica e que era um momento de mudança. A senhora Thatcher, que pode agradar ou desagradar a cada um, mas jamais poderia ser definida como uma política pouco inteligente, soube aproveitar aquela oportunidade. 

Da Istoé