A pobre classe média americana
Por Robert B. Reich*, no The New York Times, via Estadão
Os 5% de americanos de mais alta renda são hoje responsáveis por 37% de todo consumo do país, de acordo com a mais recente pesquisa da Moody”s Analytics. Isso não deveria surpreender. A sociedade americana está se tornado cada vez mais desigual. Quando tanta renda vai para o topo, a classe média não dispõe de poder de compra suficiente para manter a economia andando sem afundar cada vez mais em dívidas – o que não acaba bem.
Uma economia tão dependente dos gastos de alguns poucos é propensa também a fortes expansões e crises agudas. Os ricos ostentam e especulam quando suas poupanças vão bem. No entanto, quando os valores de seus ativos despencam, eles recuam. Isso pode provocar oscilações violentas.
Soa familiar? A economia não se recuperará realmente até essa onda de desigualdade ser revertida nos EUA. No entanto, se, por algum milagre, o presidente Barack Obama obtiver respaldo para um segundo grande estímulo enquanto o presidente do Fed, o banco central americano, mantém as taxas de juros perto de zero, isso tampouco fará o truque se o país não tiver uma classe média capaz de gastar. Os estímulos federais só funcionam se o erário estiver bem abastecido.
Um olhar retrospectivo dos últimos cem anos indicará o padrão. Durante períodos em que os muito ricos levaram para casa uma proporção muito menor da renda total – como na “Grande Prosperidade”, entre 1947 e 1977 – os EUA como um todo cresceram mais depressa e os salários médios subiram.
Criamos um ciclo virtuoso em que uma classe média em constante crescimento tinha a capacidade de consumir mais bens e serviços, o que criava mais e melhores empregos, estimulando com isso a demanda. A maré crescente, de fato, elevou todos os barcos.
Nos períodos em que os muito ricos abocanhavam uma proporção maior – como entre 1918 e 1933 e após a “Grande Regressão”, de 1981 até o presente -, o crescimento desacelerou, os salários médios estagnaram e estamos sofrendo recessões gigantes. Não é mera coincidência que, ao longo do último século, a parte dos mais ricos da renda total do país atingiu o pico em 1928 e 2007 – exatamente os dois anos que precederam às maiores crises.
A partir do fim dos anos 70, a classe média enfraqueceu. Apesar de a produtividade ter continuado a crescer e a economia a se expandir, os salários começaram a achatar porque as novas tecnologias – navios de contêineres, comunicações via satélite, por fim, computadores e a internet – começaram a solapar todo emprego americano que pudesse ser automatizado ou obtido a um custo mais baixo no exterior. As mesmas tecnologias proporcionavam recompensas cada vez maiores às pessoas que podiam usá-las para inovar e resolver problemas.
Algumas pessoas tornaram-se empreendedores que fabricava produtos. Outros viraram empresários financeiros. A remuneração dos formados em faculdades de prestígio e programas de MBA – o “talento” que atingiu os pináculos do poder em suítes executivas e em Wall Street – aumentou.
No início, a classe média continuou a gastar graças à entrada de mulheres na força de trabalho. Nos anos 60, somente 12% das mulheres casadas com filhos novos estavam em trabalhos remunerados. No fim dos anos 90, elas eram 55%. Do fim dos anos 90 até 2007, o endividamento da família típica cresceu em um terço. Como os valores dos imóveis continuavam subindo, isso parecia uma maneira indolor de conseguir dinheiro adicional.
Gastos. No fim, é claro, a bolha estourou. Isso acabou com a notável capacidade da classe média de continuar gastando a despeito dos salários quase estagnados. O mistério é por que tão pouco foi feito nos últimos 40 anos para ajudar a lidar com a subversão do poder econômico da classe média.
Com os avanços contínuos do crescimento econômico, a nação poderia ter capacitado mais pessoas a se tornarem solucionadoras de problemas e inovadoras – com uma educação desde a infância, escolas públicas melhores, maior acesso à educação superior e transporte público mais eficiente.
Os EUA poderiam ter ampliado as redes de segurança – com o seguro-desemprego cobrindo o trabalho em tempo parcial, assistência à transição para novos empregos em novos locais, criação de seguro para comunidades que perderam um empregador. Poderiam ter tornado o Medicare acessível a todos. Poderiam ter exigido de grandes empresas o pagamento de indenização para trabalhadores americanos que elas dispensam, que deveriam ser treinados para novas tarefas. O salário mínimo poderia ter sido atrelado à metade do salário médio e poderíamos ter insistido para que as nações estrangeiras com as quais temos negócios fizessem o mesmo, para que todos os cidadãos compartilhassem os ganhos do comércio.
Poderíamos ter aumentado os impostos para os ricos e reduzido a carga tributária para os americanos mais pobres. A partir do fim dos anos 70, e com crescente fervor nas três décadas seguintes, o governo fez exatamente o oposto. Ele desregulamentou e privatizou. Ele cortou os gastos em infraestrutura e deslocou uma parte maior dos custos da educação superior pública para as famílias. Ele esgarçou as redes de segurança (somente 27% dos desempregados estão cobertos pelo seguro-desemprego).
O governo americano permitiu que empresas destruíssem sindicatos e ameaçassem empregados que tentavam se organizar. Menos de 8% dos trabalhadores no setor privado são sindicalizados. Mais, em geral, ele ficou apático enquanto grandes companhias americanas se tornaram globais com menos lealdade aos EUA do que a um satélite de GPS.
Enquanto isso, a alíquota fiscal para as pessoas de alta renda foi reduzida pela metade, para 35%, e muitos dos mais ricos do país tiveram permissão para tratar sua renda como ganho de capital sujeito a não mais do que 15% de impostos.
Os impostos sobre herança, que afetavam somente o 1,5% mais alto da pirâmide de renda, foram reduzidos. Ao mesmo tempo, os impostos sobre a renda na fonte e a circulação de mercadorias – ambos arrancando um grande naco de salários modestos – foram aumentados.
O mais revelador, Washington desregulou Wall Street ao mesmo tempo em que dava garantias contra prejuízos. Com isso, permitiu que as finanças – que até então estavam à serviço da indústria americana – se tornassem sua ama, exigindo lucros de curto prazo em detrimento do crescimento no longo prazo e sugando uma porção cada vez maior dos lucros. Em 2007, empresas financeiras respondiam por cerca de 40% dos lucros corporativos americanos e uma porcentagem quase tão grande dos pagamentos, ante 10% durante a Grande Prosperidade.
Alguns dizem que a guinada recessiva ocorreu porque os americanos perderam a confiança no governo. No entanto, a explicação é anterior. As revoltas fiscais que pipocaram pelos EUA, a partir do fim dos anos 70, não foram tanto revoltas ideológicas contra o governo – os americanos ainda queriam todos os serviços públicos que tiveram. Foram muito mais contra o pagamento de mais imposto sobre rendas que haviam estagnado. Inevitavelmente, os serviços públicos se deterioraram e os déficits explodiram, confirmando a crescente desconfiança da população com relação ao governo.
Alguns dizem que nós poderíamos ter revertido as consequências da globalização e das mudanças tecnológicas. No entanto, experiências de outros países, como a Alemanha, sugerem o contrário. A Alemanha cresceu mais depressa que os EUA nos últimos 15 anos e os ganhos foram mais amplamente distribuídos.
Enquanto o salário horário médio americano subiu apenas 6% desde 1985, corrigido pela inflação, o salário dos trabalhadores alemães cresceu quase 30%. Ao mesmo tempo, o 1% de famílias mais ricas recebe hoje cerca de 11% da renda total – aproximadamente o mesmo que em 1970.
Embora nos últimos meses a Alemanha tenha sido atingida pela crise da dívida de seus vizinhos, seu desemprego ainda é inferior ao que era quando a crise financeira começou, em 2007. Como a Alemanha conseguiu? Principalmente focando em educação (as pontuações em matemática dos alemães são superiores às americanas) e mantendo sindicatos fortes.
A verdadeira razão para a “Grande Regressão” dos EUA foi política. À medida que a renda e a riqueza ficavam mais concentradas, a política americana tornou-se o que Marriner S. Eccles, ex-presidente do Fed, descreveu, nos anos 20, quando as pessoas “com grande poder econômico tinham uma influência indevida na elaboração das regras do jogo econômico”.
Com polpudas contribuições de campanha e pelotões de lobistas, os executivos dos EUA conquistaram alíquotas fiscais mais baixas e resistiram a reformas que espalhariam os ganhos do crescimento. Agora, os ricos foram mordidos pelo próprio sucesso. Os que estão no topo ficariam melhor com uma parte menor de uma economia em rápido crescimento do que com uma parte maior de uma economia parada.
A economia não pode sair da estagnação atual sem uma estratégia para reconstruir o poder de compra da vasta classe média americana, Os gastos dos 5% mais ricos não levarão a um ciclo virtuoso de mais empregos e melhoria dos padrões de vida. Tampouco podemos depender das exportações para preencher a lacuna. É impossível que todas as grandes economias, incluindo os EUA, sejam exportadoras líquidas.
O revigoramento da classe média requer a reversão de uma tendência de décadas no país para o alargamento da desigualdade. Isso é possível a despeito do poder político da classe executiva. Há tanta gente sendo atingida pelo desemprego, a diminuição da renda e a queda dos valores das moradias que os americanos poderiam ser mobilizados.
De mais a mais, uma economia não é um jogo de soma zero. Mesmo a classe executiva tem um interesse próprio em reverter a tendência. Assim como a maré crescente eleva todos os barcos, a maré vazante agora está ameaçando deixar muitos iates encalhados. A questão é se mobilizaremos a vontade política. Já a mobilizamos anteriormente em tempos ainda mais sombrios.
Como o historiador James Truslow definiu o “sonho americano”, quando cunhou o termo durante a Grande Depressão, o que buscamos é “uma terra onde a vida possa ser melhor, mais rica e mais plena para todos”. Esse sonho ainda está a nosso alcance. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
*É EX-SECRETÁRIO DO TRABALHO E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA EM BERKELEY