Experiências latino-americanas de recuperação de empresas por trabalhadores inspiram europeus
Em meio à crise na zona do euro e a questionamentos crescentes quanto à agenda de governos e do modelo econômico na Europa, experiências na América Latina são referência na construção de alternativas ao desemprego em massa e à luta pela autodeterminação dos trabalhadores no velho continente. É o que se verificou em encontro próximo a Marselha, no sul da França, nos dias 31 de janeiro e 1º de fevereiro. A cidade de Gémenos recebeu a primeira edição do “Encontro Regional para Europa e Mediterrâneo – A Economia dos Trabalhadores”. Foi organizado nas instalações da Fralib, fábrica de produção de chás que teve as atividades interrompidas pela multinacional Unilever com a transferência da produção para a Polônia, visando menores custos trabalhistas. A fábrica está hoje sob o controle dos trabalhadores e a marca é objeto de disputa judicial.
Exemplos de empresas autogeridas pelos operários na Argentina, no Brasil e no México, as pesquisas e a conquista de espaços nas universidades para o tema na América Latina, e as análises sobre os caminhos desse tipo de construção coletiva prenderam a atenção dos europeus. O encontro foi organizado pelos cooperados da Fralib, em conjunto com o Programa Facultad Abierta da Universidade de Buenos Aires, a Associação Autogestão – França, a rede workerscontrol.net, projeto Officine Zero (Itália), o ICEA (Instituto de Ciências Econômicas e Autogestão – Espanha) e a Aspas (Associação de Solidariedade com a América do Sul – França). Reuniu mais de 200 pessoas, entre trabalhadores, militantes da autogestão e pesquisadores de universidades. Resultou na troca de experiências e formas de mobilização, e no consenso sobre a necessidade de aprofundamento de intercâmbio e da solidariedade entre os países. Também, forçosamente, uma comparação entre os momentos distintos vividos pela Europa e pela América Latina.
“A América Latina teve uma década progressista, com avanços em maior e menor intensidade nos países, mas deveremos verificar uma reação da direita, e as conquistas alcançadas nos últimos anos terão de ser defendidas, como as práticas e os debates de autogestão”, afirmou Andrés Ruggeri, do programa Facultad Abierta (Argentina), um dos principais organizadores do evento. “Na Europa temos um panorama muito difícil, uma crise que tende a se aprofundar, uma situação em que as forças conservadoras aproveitam para impor suas reformas neoliberais”, completou, enfatizando a importância do fortalecimento dos movimentos de resistência e de autogestão.
“O capitalismo tem uma grande capacidade de se remodelar, e por isso os trabalhadores têm de adaptar-se, buscar maneiras de enfrentar as situações que se colocam”, disse Célia Pacheco Reyez, professora de sociologia da Universidade Autonôma Metropolitana da Cidade do México, que estuda o trabalho precário.
Gerard Cazorla, operador de máquinas há 33 anos na Fralib, que conduziu parte dos estrangeiros em uma visita pela fábrica, ressaltou que o contato com os casos argentinos, por exemplo, reforça a crença no sucesso da recuperação francesa.
Apesar da “inversão histórica de posição” entre América Latina e Europa, pelos importantes movimentos sociais e pelas experiências de resistência e construção de alternativas, seguem notórias as diferenças nos sistemas de proteção social e de acesso aos direitos dos trabalhadores nos países dos dois continentes. Mesmo sem conseguir produzir, em decorrência das disputas judiciais em torno da fábrica, os operários da Fralib foram remunerados, por determinação da Justiça, pela Unilever durante parte da ocupação, iniciada em 2011, e por mais alguns meses recebem o seguro-desemprego.
Ao longo de décadas, o sistema de remuneração na França no entanto vem retrocedendo. “Quando entrei na Fralib, um operador de máquinas recebia o equivalente a um salário mínimo acrescido em 40%, hoje a média é de 3% a mais sobre salário mínimo”, informou operário.
Grécia – “Seria importante criar uma rede internacional mais estável, permitindo um empreendimento apoiar ao outro politicamente, criar uma voz comum internacional e até mesmo com apoio material ou econômico”, afirmou o grego Theodoros Karyotis, representante de associação de iniciativas solidárias à Vio.me, empreendimento de trabalhadores em Tessalônica, que participou do encontro na França ao lado de dois operários, atuando também como intérprete.
Composta por 70 trabalhadores quando da sua falência, a Vio.me tem situação análoga à Fralib, em menor escala. Após um ano sem receber seus direitos trabalhistas e sem poder acessar o sistema de auxílio-desemprego no país, decidiram pela ocupação da fábrica. A empresa produzia materiais para construção civil. Hoje não possui capital para seguir essa linha produtiva e tampouco mercado. “A crise na Grécia faz a construção civil estar completamente parada”, disse Karyotis.
Com isso, comercializa hoje produtos de limpeza com insumos naturais, que não oferecem danos ambientais. No próximo dia 12 a Vio.me completa um ano sob controle operário, e se ampara na venda informal dos seus produtos, uma cooperativa de vinte pessoas apoiada em associações de solidariedade “de dezenas de cidades gregas”. Além disso, a cooperativa tem a figura do “membro solidário”, integrante da comunidade que, ao adquirir produtos, tem o direito de participar da tomada de decisões do empreendimento. “É uma forma a mais que o empreendimento tem de buscar o apoio da comunidade.”
Um dos países mais afetados pela crise, a Grécia vê o surgimento de diversas experiências desse tipo, segundo Karyotis. “Têm surgido muitas cooperativas produtivas e de consumo. Também redes de intercâmbio e estruturas solidárias, como centros de atendimento médico gratuito”, afirmou.
Os gregos propuseram nos debates do Encontro a criação de um fundo internacional de apoio aos empreendimentos, com recursos das próprias empresas recuperadas e cooperativas, iniciativa que recebeu o apoio de outros trabalhadores e militantes, como o francês Benoit Borrits, da Associação Autogestão da França.
Conquista argentina – A Argentina traz diversos exemplos de autogestão. Florescentes na profunda crise que o país viveu na virada dos anos 90 para os 2000, fábricas recuperadas por trabalhadores se consolidaram, funcionam a pleno vapor e estão amparadas não só em uma histórica mobilização de operários, no apoio e envolvimento das comunidades onde as fábricas estão inseridas e em mecanismos legais que permitem que as fábricas falidas passem ao controle dos antigos funcionários.
É o caso da cooperativa Têxtil Pigue, localizada em uma cidade de 15 mil habitantes a 600 quilômetros de Buenos Aires. Na semana passada a cooperativa obteve a titulação, outorgando aos trabalhadores a propriedade dos meios de produção. A iniciativa argentina foi representada na França por Francisco Martinez. “Esse encontro e esse cenário nos lembram muito momentos do início de nossa luta”, disse. A cooperativa reúne hoje 140 trabalhadores cooperados.
Brasil – Os brasileiros Vanessa Moreira Sigolo, pesquisadora do tema vinculada ao Nesol (Núcleo de Economia Solidária da Universidade de São Paulo) e Flavio Chedid, do Soltec (Núcleo de Solidariedade Técnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro), mostraram os resultados de levantamento nacional concluído no ano passado.
O Brasil possui 67 empresas recuperadas por trabalhadores em funcionamento, atuantes em diferentes segmentos, como metalurgia, mineração, indústria têxtil e outros. O estudo “Empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil” foi conduzido por pesquisadores de 10 universidades públicas brasileiras, consolidado a partir de pesquisas de campo, entrevistas com trabalhadores e análise dos resultados.
“A pesquisa buscou trazer a público as experiências de milhares de trabalhadores, que a partir da luta contra o desemprego, criaram formas coletivas e autogeridas de produção e trabalho”, disse Vanessa. “As experiências de autogestão são parte da história de resistência contra a exploração do trabalho e hoje retomam sua atualidade em face das crises sociais, econômicas e ecológicas do capitalismo contemporâneo, sendo centrais para a renovação do socialismo e das lutas sociais”, completou.
Faculdade aberta em risco – Se a Argentina é vanguarda na autogestão e possui mais de 300 empreendimentos em funcionamento, a discussão e os projetos de atuação no meio acadêmico podem estar em risco.
Programa de extensão surgido na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires em 2002 e grande articulador do evento, a exemplo também de Encontro análogo que aconteceu no Brasil ano passado em João Pessoa (PB), o Facultad Abierta sofre a ameaça de fechamento pela instituição. Uma lista de apoio ao centro de pesquisa foi assinada pelos participantes do encontro na França. “Nós enfrentamos questionamentos dentro da faculdade, uma ameaça de fechamento, mas independente do que aconteça, a luta vai continuar”, disse Andrés Ruggeri.
Dario Azzelini, sociólogo alemão de origem italiana, apresentou no seminário a página na internet sobre experiências e debates sobre controle operário. Segundo o militante, o siteworkerscontrol.net está aberto à contribuições de artigos e relatos em português, espanhol, inglês e alemão. “A proposta é ser um arquivo virtual para discussões de experiências do presente e também daquelas que já aconteceram”, disse.
Ideia maluca – O projeto Officine Zero, com sede em Milão, na Itália, é outra experiência a aproximar os trabalhadores e o “lado de fora da fábrica”. Ocupada desde o começo de 2012, a oficina de reforma de vagões ferroviários está sendo transformada em pólo de apoio a trabalhadores em situação precária, manifestações culturais como teatro, artes plásticas e música. No evento, foi exibido o documentário “Pazza Idea” (ideia maluca, em italiano), relatando a ação de jovens integrantes de coletivo cultural situado próximo à fábrica.
O encontro debateu ainda novos movimentos de resistência à crise do capitalismo, usando como mote os protestos em diferentes países. Carlos Schmidt, professor do Núcleo de Economia Alternativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, destacou as manifestações surgidas no Brasil em decorrência da organização da Copa do Mundo, “corrupção jamais vista no país, que provoca grande sensibilização popular”.
Fralib – Marca centenária (criada em 1892), o chá Elephante foi comprado pela Unilever em 1972, sendo produzido em Marselha e em Le Havre, no norte da França. Em 1997, a multinacional fechou a unidade de Le Havre e, após a pressão dos trabalhadores, transferiu parte dos funcionários (54 famílias) para a planta situada no extremo sul do país, como a família de Olivier Leberquier, delegado da CGT (central sindical francesa). A decisão de fechar também a fábrica do sul em 2010 desencadeou duas ocupações, intercaladas por disputas judiciais e a presença de seguranças privados contratados pela Unilever, instrumento previsto na legislação da França. A empresa pretende centralizar sua linha de chás na marca Lipton. A primeira ocupação aconteceu em agosto de 2011 e durou quatro meses. Em maio do ano seguinte fizeram mais uma ocupação até setembro. Finalmente, a fábrica foi vendida pela Unilever para o governo local de Marselha, que a repassou aos trabalhadores.
Hoje o chá tem uma pequena produção para distribuição militante e como forma de sensibilizar apoio para a luta dos trabalhadores da Fralib. Essa produção está sendo feita sem os aditivos químicos que eram utilizados pela Unilever para aromatizar anteriormente. O produto tem sido comercializado de maneira informal, com apoio de associações, partidos políticos e sindicatos.
Trabalhadores da Fralib e sindicatos tem organizado regularmente campanhas de boicote aos produtos da Unilever, e em especial aos chás da marca Lipton.
Da Carta Maior