França descamba para a direita e amarga sua decadência

François Hollande precipita em suas contradições

Tomada do poder por uma minoria leva ao crescimento da extrema-direita; para especialista, país vive um “déficit de democracia”

A França é um país à deriva, o enfermo da Europa. No domingo 28, o partido de extrema-direita, o Frente Nacional, obteve, pela primeira vez na V República, duas cadeiras no Senado. Um resultado previsível após o FN ter angariado 33% dos votos nas municipais de março e ter sido a legenda francesa mais popular nas europeias de maio com 26% do sufrágio, contra 21% para a legenda direitista UMP e 14% para o Partido Socialista do presidente François Hollande. No pleito atual, a UMP derrotou o PS e tornou-se a primeira agremiação, com maioria no Senado de 15 cadeiras.

Marine Le Pen, a líder do FN, festejou: “Foi uma vitória histórica”. Stéphane Ravier, um dos dois senadores eleitos do FN, emendou: “Agora vamos bater à porta do Palácio do Eliseu”. Segundo recente pesquisa, Le Pen derrotaria Hollande no segundo turno do pleito presidencial em 2017. No entanto, perderia para um forte candidato direitista. Se houver um. O futuro cenário nos devolve a 2002, quando o pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, disputou o segundo turno do escrutínio presidencial contra o direitista Jacques Chirac.

Como explicar o crescente sucesso da extrema-direita? “É uma reação à tomada do poder por uma pequena minoria a seguir programas de instituições internacionais”, rebate o filósofo Jacques Rancière em entrevista a CartaCapital. “O Frente Nacional sempre se posicionou contra um sistema que tinha duas legendas a compartilhar o poder indefinidamente, e a empurrar o povo para fora do sistema.” Rancière fala em “déficit de democracia”. Embora direita e esquerda sejam culpadas por essa ascensão do FN, a primazia cabe a Hollande, responsável número 1.  Eleito para combater a austeridade, o presidente socialista revelou-se um neoliberal.

De saída, aumentou os impostos das classes menos favorecidas, enquanto dava prioridade ao combate contra a injustiça fiscal. Resultado: um nível de aprovação de 13%, que lhe conferiu a alcunha de presidente mais impopular da história da França. Nesta semana, Hollande, que segundo sua ex-companheira não aprecia “os desdentados”, referência a pobres e remediados, resolveu reagir. Manuel Valls, seu premier neoliberal com origens ibéricas e dificuldades para sorrir, anunciou a supressão de impostos sobre a receita para os mais pobres. O objetivo, segundo o ministro das Finanças, Michel Sapin, “é impulsionar o crescimento”, embora mais reduções de gastos públicos serão necessárias para financiar o atual corte, e os futuros. Valls não deixa de acentuar que o Estado de Bem-Estar “vive acima de seus meios”.

Por sua vez, a direita, também responsável pela ascensão do FN, está dividida entre caciques com carisma de texugos. E está prestes a acolher novamente o ex-presidente bling-bling Nicolas Sarkozy, que se apropriou do discurso contra imigrantes do FN durante seu mandato, de 2007 a 2012. Embora a postura anti-imigração tenha conferido credibilidade a Sarkozy, sua política econômica foi um desastre. Agora assume os cabelos grisalhos, e adota um discurso mais calmo para se apresentar como o estadista experiente que não vai repetir erros. E além de unir a direita, ele aspira à condição de salvador da pátria. Nesse novo figurino, Sarko, que alia processos de financiamento ilegal a campanhas eleitorais, inclusive a de 2007, anunciou em um programa de tevê: “Não posso ficar em casa vendo a França naufragar”.

Com crescimento nulo no primeiro semestre do ano, nível de desemprego de 10%, a dívida pública atingiu, no fim do segundo trimestre, 2,02 trilhões de euros, ou 95% do PIB. Segundo Sapin, a economia crescerá 1% neste ano e 1,7% em 2015, previsões consideradas otimistas por numerosos observadores. Sapin diz, ainda, que por causa da ausência de crescimento econômico nos primeiros dois trimestres a França não poderá cortar seu déficit orçamentário para 3,8% do PIB neste ano e 3% no próximo, de acordo com as regras da União Europeia. Na verdade, o déficit subirá de 4,3%, em 2013, para 4,4%, em 2014. Os almejados 3% serão alcançados somente em 2017.

Em meio a esse marasmo econômico e de cortes de 50 bilhões de euros em gastos públicos até 2017, proliferam greves organizadas por, entre outros, ferroviários, pilotos da Air France e enfermeiras. Para piorar o quadro, Hollande, com o propósito de, pelo contrário, melhorar sua imagem, tornou-se aliado-mor de Barack Obama na luta contra o Estado Islâmico. Em vez do diálogo, mergulhou o país em uma espiral violenta, sem perspectivas de um final feliz. A primeira vítima foi o guia alpino Hervé Gourdel, de 55 anos. Foi sequestrado e decapitado por um grupo, na Argélia, ligado ao ISIS, “por ser francês”, observou Hollande. O presidente havia dito alto e claro que não negociaria com terroristas.

Todas as legendas francesas, com a exceção do Frente de Esquerda, manifestaram-se a favor da intervenção militar no Iraque e na Síria. França adentro, a opinião pública, a recordar os carneiros de Panurge, segue Hollande ao menos por este caminho desastrado. Mesmo assim, protestos contra o “amálgama” entre minoria bárbara e religião muçulmana em uma França onde 10% da população pertence a essa religião, têm sido positivos. Na sexta-feira 26, na porta da Grande Mesquita de Paris, lia-se em um cartaz: “Homenagem a Hervé Gourdel”. No meio da multidão, Calima, de 30 anos e de origem argelina, diz: “Estou cansada de ter de me justificar desde 11 de setembro. Não sou responsável por nada disso”.  Ainda Calima: “Posso usar um véu, mas isso não significa que sou terrorista”.  O reitor da Grande Mesquita leu um verso do Alcorão: “Quem mata um homem, mata a humanidade inteira”.

Apesar de não negar o Holocausto como fez seu pai e de ter atenuado a retórica racista do FN, Marine Le Pen continua a culpar os imigrantes pela escassez de empregos. Ela martela contra a “islamização da França”. Não ajuda o fato de um renomado filósofo reacionário como Alain Finkielkraut dizer que imigrantes estão “roubando” o emprego de franceses “puros”.  O discurso cai como uma luva para a futura campanha presidencial de Marine Le Pen.

Da Carta Capital