Exemplo verde-amarelo

A transferência de conhecimentos é apoiada por multinacionais em busca de soluções para embalagens e outros materiais que colocam no mercado e são descartados após o consumo

Na Tailândia, eles são chamados “sa-leng”. Na China, “zïyuán huí shöu zhê”. Na Colômbia, México e outros países latinos, são conhecidos como “clasificadores”, típicos personagens que percorrem ruas das grandes cidades em busca do que a população joga fora e serve como matéria-prima para reabastecer a produção das indústrias. No Brasil, os catadores de lixo reciclável têm um diferencial que chama atenção: organizados em cooperativas, se profissionalizam, aumentam a escala, ganham estrutura e força comercial e, como resultado, eliminam estigmas sociais. Mais que isso, sustentam o modelo para coleta e reciclagem dos resíduos urbanos. Tipicamente nacional, a tecnologia está agora sendo transferida para diversos países da América do Sul, Central e Ásia.

A transferência de conhecimentos é apoiada por multinacionais em busca de soluções para embalagens e outros materiais que colocam no mercado e são descartados após o consumo. “A expansão mostra o sucesso do modelo de reciclagem com viés social desenvolvido pelo país nas últimas décadas”, afirma André Vilhena, diretor-executivo do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre). A instituição reúne empresas de grande porte para promover a gestão e o reaproveitamento dos resíduos urbanos, fornecer apoio técnico e acompanhar a evolução desse mercado, que gira em torno de R$ 10 bilhões por ano no Brasil, envolvendo 800 mil catadores.

“O padrão brasileiro, centrado no trabalho das cooperativas, inspira as empresas na responsabilidade pós-consumo”, acrescenta Vilhena. Somam-se esforços no setor produtivo para que ganhos ambientais, sociais e econômicos cheguem a regiões em desenvolvimento com perfil semelhante de desigualdades. Para a realidade desses países, seja pelas características culturais, sociais ou geográficas, as indústrias consideram o sistema que ajudaram a construir no Brasil mais eficiente que o implantado nos países ricos.

Na Europa, tanto consumidores como empresas pagam pelo serviço de reciclagem das embalagens, mediante tarifas e impostos. Gerar lixo custa caro e a população é impelida a deixar materiais em pontos de entrega voluntária, dentro de um rígido controle para evitar o despejo nos aterros sanitários. “A transferência do know-how nacional acontece em função da cobrança da sociedade por uma postura mais positiva e ativa das indústrias nessas regiões de economia emergente”, explica Vilhena. Há também a pressão de novas normas e leis para regulamentar a responsabilidade pelos resíduos nos diferentes países.

“A experiência das cooperativas na questão do lixo é vista como case mundial muito forte pela matriz da companhia em Atlanta”, revela José Mauro de Morais, diretor de meio ambiente da Coca-Cola Brasil. Em território brasileiro, a multinacional mantém em parceria com a rede Wal-Mart 284 estações de reciclagem, onde catadores cooperados recolhem garrafas plásticas, vidros, latas, papeis e outros materiais deixados pelos consumidores. A meta é capacitar cem cooperativas para a gestão do negócio, dentro de um programa iniciado em julho deste ano, com objetivo de aumentar a renda dos trabalhadores e a quantidade de embalagens coletadas após o consumo. “Acreditamos que esse modelo é muito eficaz, mas precisa de suporte na área administrativa para ser auto-sustentável”, ressalta Morais.

Diante dos resultados no Brasil, a Coca-Cola mobilizou outras empresas para instalar igual sistema na Tailândia. Em Bancok, capital do país, foi criada uma associação empresarial nos moldes do Cempre para atuar junto a prefeituras, comerciantes de sucata, indústrias locais e lideranças comunitárias, visando a estruturação de cooperativas. A Tailândia produz 41 mil toneladas de lixo por dia, a maior parte depositada em lixões a céu aberto. No total, 22% dos resíduos coletados são reciclados por atividades como os “bancos comunitários de lixo”, nos quais a população deixa os materiais reaproveitáveis em troca de dinheiro, que pode ficar depositado na “conta bancária” ou ser sacado para fazer compras. “É um caminho eficiente de promover a separação dos resíduos na fonte”, explica Kvena Jongthitinon, secretário-executivo do Thailand Institute of Packaging Management for Sustainable Environment, mantido pela federação das indústrias local. Técnicos tailandeses foram treinados no Brasil para organizar e profissionalizar os catadores de rua. Entre 16 e 19 de novembro, Bancok vai sediar a conferência da Global Alliance for Recycling and Sustainable Development (GARSD) – rede internacional coordenada pelo Cempre para a troca de experiências de reciclagem entre os países em desenvolvimento. A estratégia atual é expandir o modelo brasileiro na Ásia. Por conta da Olimpíada de 2008, a China enviou um comitê para o Brasil com o propósito de dar melhores condições de trabalho e integrar os catadores ao sistema oficial de reciclagem.

A primeira experiência de transferência do modelo brasileiro aconteceu na Venezuela. Depois ampliou-se na América do Sul. “Criamos um sistema de gestão de resíduos que prevê a inclusão social e formal de catadores, evitando problemas como condições insalubres e trabalho infantil”, diz María José González, secretária-executiva do Cempre-Uruguai. “O convite para catadores uruguaios visitarem cooperativas no Brasil motivou o trabalho que culminou na nova lei de embalagens”, acrescenta María José. Hoje há 40 cooperativas em processo de formação no país, com apoio do Ministério de Desenvolvimento Social e recursos do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul.

“A troca de informações contribui para encontrar oportunidades na cadeia econômica da reciclagem”, pondera Alexandra Cáceres, do Cempre-Colômbia, criado em 2008 por doze grandes empresas. Ela lembra que seguir modelos de sucesso já implementados em outros países, como o Brasil, é um atalho para evitar riscos e medir a viabilidade de aplicação local. Na Colômbia, a população gera 27,6 mil toneladas de lixo por dia, das quais 80% poderiam ser recicladas. No entanto, a maior parte tem destino ilegal e inadequado. Na capital Bogotá, existem quase 8,5 mil catadores, além de 10 mil familiares que dependem da reciclagem para sobreviver. “É uma população que continua discriminada, apesar do seu trabalho ter conseguido prolongar a vida útil dos aterros sanitários, reduzindo em 12% a quantidade de resíduos que contaminam águas e solos”, afirma Alexandra.

Com base na experiência brasileira, o modelo de cooperativas engatinha no México e, no próximo ano, começará no Peru. “A iniciativa está sendo mobilizada por empresas que querem minimizar impactos de seus resíduos”, informa Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da TetraPak Brasil. Neste ano, a companhia exportou para a República Dominicana o método criado no Brasil que permite reutilizar caixas de leite e suco para fabricar papel reciclado e produzir placas e telhas destinadas à construção civil. Além disso, uma tecnologia pioneira no mundo – também desenvolvida por brasileiros – separa totalmente o papel, o plástico e o alumínio contidos nas embalagens longa vida. “Com a recuperação da economia após a crise global, o projeto é transferir a tecnologia, inclusive para países avançados”, prevê o executivo. No ano passado, 26,6% das embalagens longa vida colocadas no mercado nacional foram recuperadas para reciclagem, com taxa de crescimento de 7% ao ano. O preço pago pelo material separado do lixo, que era de R$ 160 a tonelada em 2006, atingiu R$ 350 em 2008.

O trabalho das cooperativas de catadores, segundo von Zuben, é essencial nesse processo. Além de processar quantidades em escala industrial, garante a qualidade dos materiais dentro dos padrões exigidos para retornar à cadeia produtiva. As indústrias consideram importante estruturar a coleta seletiva e a reciclagem nos países emergentes, porque a geração de lixo por habitante tende a aumentar com o crescimento econômico e do consumo. Os resíduos recicláveis são essenciais como matéria-prima industrial, reduzindo custos e o uso de água e energia – além dos ganhos ambientais e sociais. Sem estrutura eficiente de coleta para abastecer indústrias, a solução tem sido importar materiais separados do lixo em outros países. De acordo com dados da Convenção da Basiléia, que regula o comércio internacional de resíduos, o mundo gera mais de 3 bilhões de toneladas de lixo por ano. Desse total, 2% são exportadas. Em dez anos, a quantidade transportada entre fronteiras quadruplicou.

O assunto foi alvo de polêmica, quando recentemente o Brasil importou da Inglaterra 1,4 mil toneladas de lixo plástico que acabaram confiscadas porque continham impurezas, como restos de banheiros químicos e até fraldas sujas. O episódio revelou uma contradição: apesar de o país exportar o seu modelo de reciclagem, há muito que fazer internamente para recuperar o lixo na quantidade necessária. “O sistema não pode depender de subsídios e é preciso definir claramente quem paga pelo serviço”, propõe o pesquisador Emílio Eigenheer, da Universidade Federal Fluminense, que em 1985 criou a primeira iniciativa brasileira de coleta seletiva, em Niterói (RJ). Quatro anos depois, nasceu a primeira cooperativa de catadores do país, a Coopamare, em São Paulo. Hoje o Brasil recicla 12% das 140 mil toneladas diárias que gera de resíduos urbanos. Cerca de 55% continuam indo para lixões ou aterros sem controle.

Apesar das dificuldades, o número de cidades que fazem a coleta seletiva aumentou de 81, em 1994, para 405, no ano passado. A maioria dos municípios depende do trabalho dos catadores, responsáveis por 60% dos resíduos reciclados no Brasil. O mercado aguarda avanços com a nova lei que estabelece a Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada em 15 de outubro pelo grupo de trabalho sobre resíduos na Câmara dos Deputados e que está pronta para ir a plenário. “A legislação consolida a gestão municipal dos resíduos, dentro do conceito de responsabilidade compartilhada”, explica especialista em direito ambiental José Valverde, consultor técnico do projeto.

Do Valor Econômico