Presidenta dos Bancários denuncia: ´Banco Central está extrapolando suas funções´

Atualmente, pagamentos em geral — luz, água, telefone, carnês, títulos — e serviços de crédito podem ser realizados em lotéricas, lojas, farmácias, supermercados, agências postais. No jargão “bancariês”, esses estabelecimentos têm nome e sobrenome: correspondentes bancários.

A resolução nº 2.640, de 1999, do Conselho Monetário Nacional (CMN) foi que os criou. A ideia é que fossem instalados apenas em cidades distantes dos grandes centros, onde não houvesse agência bancária. Porém, ao longo desses 12 anos, o Banco Central (BC) foi flexibilizando as regras e a função deles, desvirtuada.

Em dezembro de 2007, havia no Brasil 95.849 correspondentes. Em dezembro de 2010, 165.228. Aumento de 72% em quatro anos. No mesmo período, o número de agências bancárias cresceu apenas 5%, totalizando 19.013 unidades no país.

“Está ocorrendo uma abertura desenfreada de correspondentes bancários, que se tornaram ‘ótimo negócio’ para os bancos”, denuncia Juvandia Moreira Leite. “Os bancos os utilizam para economizar na prestação de serviço. Só que com essa política perdem os clientes e, principalmente, os funcionários, os grandes prejudicados.”

“Os recursos economizados ficam com os banqueiros e não com os bancários e a sociedade, que paga tarifas, taxas e juros e elevados. Os bancos retiram da sociedade para aumentar seu bolo”, vai mais fundo Juvandia. “Para agravar, em 31 de março, o Banco Central baixou uma norma que libera mais a abertura de correspondentes. Os bancos são os únicos beneficiários.”

Juvandia Moreira Leite é presidenta do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região. Na entrevista a esta repórter, ela desnuda esse serviço muito usado, mas do qual pouco sabemos.

Viomundo – De alguns anos para cá, é cada vez maior a possibilidade de se pagar contas em lotéricas, supermercados, farmácias, bancos postais. Qual a relação desses locais com os bancos propriamente ditos?

Juvandia Moreira Leite – Chamamos esses estabelecimentos de correspondentes bancários; seus serviços são contratados pelos próprios bancos. A resolução nº 2.640, de 25 de agosto de 1999, do Conselho Monetário Nacional (CMN) foi que os criou. Ela permitiu aos bancos contratar empresas para o desempenho de suas funções em cidades longínguas, com poucos habitantes, onde não houvesse agência bancária à disposição da população.

A ideia era socialmente justa. Tornava possível a bancarização onde não havia serviços bancários. Só que, a pedido da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), o BC foi paulatinamente emitindo outras resoluções, que flexibilizaram a contratação dos correspondentes, desvirtuando a função deles. E, aí, da bancarização passamos à precarização do emprego. Os bancos são os grandes beneficiários dessa política nefasta.

Viomundo – Mas o governo usa correspondentes…

Juvandia Moreira Leite – Os bancos públicos os utilizam para realizar pagamentos dos programas sociais, como o Bolsa Família. Quando usado para esse fim é uma atuação mais plausível, já que está associada a uma função social.

Viomundo – Quando a atuação é danosa?

Juvandia Moreira Leite – Quando utilizados somente para substituir o atendimento prestado pela agência bancária. É o que geralmente acontece.

Viomundo – Quer dizer que na prática os correspondentes são agências bancárias?

Juvandia Moreira Leite – Sim, e com “vantagens” adicionais para os bancos: não precisam ter planos de segurança exigidos para abertura de uma agência tampouco respeitar os direitos previstos na nossa convenção coletiva de trabalho.

Ou seja, são agências bancárias sem portas de segurança, vigilantes ou sistema de filmagem. Os funcionários, apesar de exercer diversas funções típicas de bancários, estão enquadrados em outras categorias. Recebem salário inferior ao dos bancários e não estão protegidos pelas dezenas de cláusulas previstas na nossa convenção coletiva de trabalho, entre elas a participação nos lucros e resultados, pisos salariais, jornada de seis horas e direitos relacionados à saúde. Não à toa cada vez mais os bancos preferem ampliar os correspondentes em vez de abrir novas agências.

Viomundo – Quantos correspondentes há no Brasil?

Juvandia Moreira Leite – Segundo dados do Banco Central, havia, em dezembro de 2007, 95.849 correspondentes bancários. Em dezembro de 2010, 165.228. Um aumento de 72% em quatro anos. No mesmo período, o número de agências bancárias cresceu apenas 5%, chegando a 19.013 unidades em todo o país.

Uma prova da distorção, do desvio dos correspondentes em relação à proposta original, é São Paulo. O estado mais bancarizado concentra a maior parte dos correspondentes bancários do Brasil. Das 165.228 unidades existentes em dezembro de 2010, 39.720 estavam aqui. Portanto, 24% do total. A região Sudeste concentra 46%. Tem também 55% das agências bancárias do país. Em compensação, as regiões Norte e Nordeste e as periferias dos grandes centros urbanos continuam com poucas agências e poucos correspondentes.

Viomundo – Se fizermos uma enquete entre clientes de correspondentes de São Paulo talvez parte considerável diga que esse serviço é uma comodidade. Logo no início, a senhora apontou um senão: segurança. Afinal, os clientes perdem ou ganham?

Juvandia Moreira Leite – Perdem mais do que ganham. Perdem principalmente na qualidade do atendimento. Os clientes pagam tarifas elevadas e não têm qualidade no serviço. Enfrentam filas e insegurança tanto física (têm maior risco de assalto) quanto relacionada ao sigilo bancário. Os recursos que os bancos estão economizando ficam obviamente com os banqueiros e não com os bancários e a sociedade, que paga tarifas, taxas e juros e elevados. Ou seja, os bancos retiram da sociedade para aumentar seu bolo.

Viomundo – Os funcionários seriam os maiores prejudicados?

Juvandia Moreira Leite – Com certeza, são. Deixam de receber todas as formas de remuneração e benefícios previstos na convenção coletiva de trabalho dos bancários. A conseqüência é a precarização do emprego em contrapartida à barganha dos banqueiros, que buscam ampliar mais seus lucros.

Viomundo – Entre bancários é alta a incidência de distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (Dort), mais conhecidos no Brasil como lesões por esforços repetitivos (LER), e de transtornos mentais, como ansiedade, depressão, fadiga crônica e esgotamento profissional. Os trabalhadores dos correspondentes bancários estão sujeitos às mesmas doenças?

Juvandia Moreira Leite – Sim, devido ao ritmo intenso de trabalho, à pressão por metas, ao convívio com a ocorrência de assaltos. Os correspondentes, aliás, têm agravantes em relação aos bancários caixas.  São submetidos à jornada de trabalho superior às seis horas dos bancários. Também correm mais risco de assaltos, já que os  correspondentes não têm a obrigação de respeitar a legislação de segurança bancária, que prevê, por exemplo, número de vigilantes, sistema de filmagem e equipamentos como porta de segurança com detector de metais.

Viomundo – Que tipo de repercussão os correspondentes têm sobre os bancários propriamente ditos?

Juvandia Moreira Leite — Existe a possibilidade, por exemplo, de os bancos expandirem cada vez mais sua rede de atendimento por meio dos correspondentes bancários em vez de aumentar o número de agências. Consequentemente, a grande expansão de correspondentes é um risco para o futuro do emprego bancário que tende a perder cada vez mais espaço, até ser extinto, já que a contratação de correspondentes tem custos bem mais baixos para as instituições financeiras.

Bom para os bancos, ruim para clientes e trabalhadores. É injustificável que empresas tão rentáveis queiram elevar ainda mais seus lucros à custa da precarização de direitos dos trabalhadores e de serviços aos clientes.

Viomundo – Então os correspondentes se tornaram uma forma de os bancos lucrar mais?

Juvandia Moreira Leite – Sem dúvida, é uma forma de expansão dos negócios bancários, com custos reduzidos. Os correspondentes bancários se transformaram num “ótimo negócio” para os bancos, que se utilizam dessa política para economizar na prestação de serviço.

Repito: os correspondentes, ao contrário das exigências para se abrir uma agência, não precisam seguir planos de segurança e muito menos respeitar a legislação trabalhista que protege os bancários.

Viomundo – Os bancos têm lucratividade absurda. Isso tem algo a ver com os correspondentes?

Juvandia Moreira Leite — Com a abertura de correspondentes, os bancos ampliam o número de operações, cobram mais tarifas, logo aumentam suas receitas. Mas outros fatores também contribuem para os altos lucros dos bancos, como a cobrança de tarifas e as fusões que aumentaram ainda mais a concentração dos lucros em poucas instituições financeiras.

Viomundo – É verdade que os bancos empurram os pobres para os correspondentes, ficando com o filé-mignon?

Juvandia Moreira Leite – Sim. O correspondente bancário é um segmento de atendimento para a população de baixa renda. E na agência, se faz a triagem dos potenciais investidores e compradores de produtos financeiros. Esses clientes, os bancos fazem questão de manter nas agências. Os de baixa renda interessam pouco às instituições financeiras, já que consomem menos produtos. Os clientes não-rentáveis são direcionados aos correspondentes bancários e a um atendimento precário.

Viomundo – Que bancos brasileiros têm correspondentes bancários?

Juvandia Moreira Leite — Quase todos os principais. Em fevereiro de 2011, segundo dados do Banco Central, as instituições financeiras com maior número de correspondentes bancários eram Caixa Econômica Federal (32.535), Bradesco (32.443), Aymoré CFI (parte do grupo Grupo Santander Brasil, com 24.822 ) e Banco do Brasil (20.382). No entanto, outros bancos como Itaú-Unibanco e HSBC também possuem número expressivo de correspondentes bancários contratados.

A propósito: até 31 de março, os bancos dependiam de farmácias, lojas, supermercados, para abrir novos pontos. Agora, não mais. O BC baixou norma que permite aos bancos criar os seus próprios correspondentes. Essa norma, que visa a atender exclusivamente aos interesses da Febraban, vai ampliar mais a precarização do emprego no setor.

Viomundo – Essa nova norma significa que os bancos vão poder abrir as próprias “biboquinhas”?

Juvandia Moreira Leite – Sim, todos os bancos agora podem abrir suas “biboquinhas”, sem precisar de farmácia ou supermercado, por exemplo. Antes da norma, eles contratavam como correspondentes empresas cuja atividade principal não era a bancária. Essa regra caiu, abrindo duas possibilidades: 1) o banco cria correspondentes bancários dentro do próprio conglomerado; ou 2) contrata uma empresa que faça exclusivamente serviços bancários. Ou seja, se você quiser criar uma empresa para prestar serviços bancários aos bancos, agora pode.

Viomundo – Liberou geral?

Juvandia Moreira Leite – Os critérios para a contratação de correspondentes estão cada vez menos rígidos. Os próprios bancos podem agora abri-los. Para ganhar mais dinheiro, vão preferir abrir um correspondente a uma agência, já que não precisam seguir as normas de segurança bancária nem os direitos trabalhistas dos bancários. Por isso, agora, os próprios bancos poderão ter as suas “biboquinhas”.

Viomundo — Os trabalhadores dos correspondentes têm consciência da exploração a que são submetidos?

Juvandia Moreira Leite — Apesar da carga de trabalho muito maior, eles não têm consciência do valor que agregam à instituição financeira sem receber um tostão a mais por isso. Mas já há casos de ex-funcionários que acionaram a Justiça, pedindo a equiparação de direitos com a categoria bancária.  Boa parte deles tem ganhado a causa.

Viomundo – Quer dizer que o BC acaba legislando sobre relações do trabalho?

Juvandia Moreira Leite – Da forma como atua, sim, pois possibilita a alteração do contrato de trabalho. Com estas normas, o BC está criando uma função de trabalho, sem regulamentação. E, assim, está extrapolando seu papel que é fiscalizar e regular a atuação dos bancos e não de legislar sobre questões trabalhistas.

Viomundo – A que sindicato os funcionários de correspondentes deveriam recorrer para acionar a Justiça?

Juvandia Moreira Leite – Depende do local de trabalho. Se ele trabalha em loja, é representado pelos comerciários; em banco postal, pelo sindicato dos Correios.

Viomundo – E vocês o que pretendem fazer em relação à nova norma do BC?

Juvandia Moreira Leite –  Estamos estudando medidas judiciais para contrapor essa ação do Banco Central, uma vez que o órgão está extrapolando sua função. Seguiremos, promovendo o debate com a sociedade, para mostrar que correspondente bancário deve servir para inclusão bancária e não para precarização do emprego e da prestação de serviço. Levaremos também essa pauta ao Congresso Nacional e ao governo federal.

Do Viomundo (Conceição Lemes)