Mídia| Seriado de terror

A exposição do caso Isabella e seus efeitos entre as crianças

Como a tragédia familiar da menina Isabella, transformada em seriado de suspense e terror, pode mexer com a cabeça das pessoas, especialmente das crianças como ela

Por Cida de Oliveira

Enquanto o texto desta reportagem era finalizado, policiais encerravam a reconstituição do crime que levou à morte de Isabella Nardoni, de 5 anos. Ruas próximas ao local foram interditadas e o espaço aéreo fechado pela Aeronáutica. Tudo para não atrapalhar a encenação dos últimos momentos de vida da menina. Emissoras transmitiam ao vivo e quem dependia da TV aberta não tinha opções. E assim tem sido desde o final de março, quando o episódio ganhou manchetes, capas de revistas e horas de rádio e TV. Entre solidários e curiosos, ambulantes e oportunistas de plantão em busca de um lugarzinho no enquadramento das câmeras, mídia e público em geral proporcionaram um show de horrores. Mas, além de condenar previamente os acusados e expô-los ao apetite de tantos heróis ávidos por fazer “justiça” com as mãos, paus e pedras, a overdose de violência pode levar a outros estragos.

No começo de abril, em Cariacica (ES), uma menina de 10 anos, filha de um motoboy, teria pulado do quarto andar. Tinha medo do pai, que chegara nervoso em casa, como sempre acontecia, segundo um jornal local. O pai foi preso e não se falou mais no assunto.

De 29 de março para cá, nas rodas de conversa, no ônibus, no elevador, na fila do caixa eletrônico, nas padarias e festinhas há sempre uma história sendo contada. Há sempre alguém que conhece uma criança que teria dito estar “aliviada por não ter sido jogada janela abaixo”. Ou que tenha medo de que “a moda pegue”. Dias desses, a pequena Sarah, de pouco mais de 2 anos, perguntou à mãe: “Se eu cair lá embaixo, você não me segura, né? Vou morrer igual a Isabella”. Quem conta é Nelma Alcântara da Silva, mãe da menina, que mora num prédio da Cohab, em Carapicuíba (SP). Hellen, 10 anos, irmã de Sarah, impressionou-se: “Fiquei triste como se ela (Sarah) tivesse caído”.

O psicólogo Ronald Guttermann, autor do livro O Jardim da Infância Perdida, trabalhou durante cinco anos na extinta Febem acompanhando crianças pequenas vítimas de agressão física, entre outras. Segundo ele, as menores de 10 anos são as mais prejudicadas. “Independentemente de quem seja o autor do crime, a idéia que martela nas cabeças ainda em desenvolvimento é ‘como pode um pai matar um filho’?”, diz. “Isso gera uma angústia enorme.” E não há, como nos contos de fadas em que a personagem da madrasta é sempre associada ao mal, como voltar o tempo. O final já está fechado e o estrago está feito.

A angústia a que Guttermann se refere afeta o processo de formação da confiança e dos vínculos afetivos. E, para ele, a base da construção da sociedade é a confiança. Para que limites possam ser apresentados pelos pais, é preciso haver confiança. “Quando isso se quebra, as relações se tornam mais frias, frágeis e inconseqüentes”, resume o psicólogo, fazendo referência a tantas infrações cometidas por crianças e adolescentes justamente pela falta de limites. “Num momento como esse os pais têm de reforçar e mostrar seu amor pelos filhos. Deixar claro que um episódio como o vivido na família Nardoni é raro e, quando ocorre, é motivado por uma doença emocional, muito séria, que precisa ser tratada”, explica.

Marisa Fefferman, professora de Psicologia da Universidade de São Paulo, autora do livro Vidas Arriscadas, reforça o alerta: “A história, da maneira como foi explorada, pode quebrar o que resta da já fragilizada instituição familiar”.

Pega e lincha –
Não bastasse a exibição diária e ostensiva da tragédia de Isabella em si, as crianças espectadoras ainda tinham de conviver com a odiosa relação mídia-platéia, esta que o psicanalista Contardo Calligaris chamou de “turba do pega e lincha”, em artigo publicado na Folha de S.Paulo. O colunista dispara sua crítica contra a atitude dos que davam plantão n