Artigo|Raposas e ameaça à nação

Esperemos que o Supremo Tribunal Federal assuma a defesa do estado de direito e legitime de vez a demarcação de Raposa Serra do Sol. Por Spensy Pimentel

Por Spensy Pimentel

Completaram-se em abril três anos desde que o presidente Lula assinou o decreto de homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, com 1,68 milhão de hectares, encerrando um processo de reconhecimento territorial que se arrastou por quase três décadas. Infelizmente, não há, ainda, muito a comemorar.

No mês do aniversário, o governo determinou finalmente a Operação Upatakon, para promover a desintrusão da área, visando a retirada de meia dúzia de arrozeiros que ainda não tinham aceitado os acordos propostos para indenização e reassentamento. A maioria já tinha saído pacificamente. Em seguida, um general do Exército se autonomeou porta-voz da sociedade brasileira – a qual, segundo ele, não estaria de acordo com a atual política indigenista – e defendeu os invasores que resistiam de forma violenta à ação da Polícia Federal.

A homologação de Raposa Serra do Sol é uma questão de justiça histórica. Não são poucos os reparos devidos. Seja pelos séculos de exploração a que os índios foram submetidos (inclua matança, escravidão, servidão); seja pelo fato de sua presença ter ajudado a garantir aquelas terras para o Brasil em disputa com a Inglaterra decidida em 1904; ou até mesmo por ser da região de Raposa a origem do mito de Makunaima, alçado a ícone da brasilidade pelo Modernismo.

A tal política atacada pelo mais novo “porta-voz da sociedade brasileira”, é bom que se lembre, foi determinada pela Constituição de 1988 e considerada exemplo mundial. O Brasil tem quase 13% de seu território reconhecido como terra indígena: já são mais de 600 terras. Ainda há algumas centenas a demarcar. De qualquer forma, pode-se dizer que ao menos uma parte das injustiças fundiárias envolvendo indígenas no Brasil já é passado – o que não é pouca coisa, se considerarmos o histórico de violência a que foram submetidas as populações nativas.

Ao que o general chama de “segregação”, as políticas públicas atuais dão outro nome: compensação, reparação. Como se pode ver nos debates recentes sobre cotas, trata-se de um mecanismo ainda pouco compreendido pela chamada “opinião pública” brasileira (leia-se meia dúzia de apaniguados dos donos de jornais), apesar de muito bem avaliado pela população. Além dos direitos a suas terras, os índios estão recebendo assistência em educação e saúde – a queda na mortalidade infantil e o crescimento populacional acima da média brasileira são, em parte, reflexo disso.

É compreensível que os militares procurem constantemente identificar “ameaças à soberania”, até para justificar os salários que recebem. Mas é difícil enxergar um motivo plausível para temores no caso em questão. Não só os índios têm cada vez mais motivos para se orgulhar de ser brasileiros como os povos de nações vizinhas vêm procurando entrar em nosso país para buscar cidadania – curiosamente, na região sul de Mato Grosso do Sul, a grita da elite é contra essa “invasão”, por parte dos guaranis paraguaios. Se é para falar de política equivocada em relação aos índios, mais justo seria lembrar o loteamento da fundação responsável pela saúde dos povos indígenas (Funasa) para o PMDB? Ou o incentivo do megaempresário da soja e governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, à extensão do monocultivo de modelo predatório para o interior das terras indígenas do estado, conforme denunciam lideranças?

Curioso é que durante pesquisa no site do Clube Militar, onde o general Heleno proferiu a palestra que gerou toda a discussão sobre as tais “ameaças à soberania nacional”, deparei com uma nota intitulada “A Revolução Democrática de 31 de Março de 1964”. Alguém tem dúvidas sobre o que está em jogo na atual discussão de Roraima?

Esperemos que o STF assuma de vez a defesa do estado de direito e legitime de vez a demarcação de Raposa Serra do Sol. O Brasil precisa desta e de mais algumas demonstrações com igual peso simbólico para avançar em sua democracia.

Spensy Pimentel é jo