Retrato|100 mil rostos

Livro recupera a construção de uma foto histórica e seus personagens

Por Xandra Stefanel

Na manhã daquele 26 de junho de 1968 começaram a chegar estudantes à Praça
Marechal Floriano, na Cinelândia. Fazia sol. Rapidamente pequenos grupos
dispersos tomavam corpo de multidão no centro carioca. Às 11 horas, 15 mil
pessoas estavam sentadas nas escadarias da Assembléia Legislativa e do Teatro
Municipal. A convocação da véspera se espalhara pela classe média. O governador
Negrão de Lima autorizara a passeata, mas ao mesmo tempo decretara ponto
facultativo com intenção de esvaziá-la. Não funcionou. Às 13h40 um mar de gente
já ouvia os discursos inflamados de lideranças como Vladimir Palmeira contra o
regime golpista. Não havia microfone, carro de som. As palavras ecoavam pela
repetição. Uma grande corrente humana se formou da Cinelândia à Candelária. Em
paz, estudantes, professores, sindicalistas, padres, freiras, famílias inteiras
fizeram a Passeata dos 100 Mil.

O Jornal do Brasil incumbiu o repórter fotográfico Evandro Teixeira de grudar
em Palmeira. E assim nasceu uma das imagens mais clássicas do período: uma faixa
com os dizeres “Abaixo a ditadura – povo no poder” cercada de rostos por todos
os lados, a maioria nitidamente identificável. Depois de décadas convivendo com
a frase “Olha eu aqui”, o fotógrafo decidiu ir atrás das histórias daqueles
rostos e reuni-las no projeto 68: Destinos. Passeata dos Cem Mil (Editora
Textual, 120 páginas). No livro, que começou com o site
www.evandroteixeira.net/68destinos, uma centena desses manifestantes contam o
rumo que a vida tomou. “Eu quis levar todos à Cinelândia para fazer a foto no
mesmo lugar. Quando um grupo se reencontrava era uma choradeira. Fiquei feliz
por recontar a história desse dia que foi tão glorioso, apesar do que veio
depois”, diz Evandro.

O arquiteto Ernandes Fernandes [1] e a designer Elayne Fonseca [2] nem sequer
se conheciam naquele 26 de junho. E quando se casaram, em 1972, não faziam idéia
de que estavam na mesma foto. Só descobriram no início dos anos 1980, ao
trabalharem no projeto gráfico do livro Fotojornalismo, do mesmo Evandro.
“Sempre existiu a história dessa fotografia na nossa vida. Essa foto ficou
famosa no nosso círculo de amigos. Só a Elaine achou 55 conhecidos”, conta
Ernandes, que no dia da passeata estava com medo, pois havia sido preso um dia
antes, na Praia Vermelha.

Carlos Henrique [3] e sua irmã Maria Alice Tibiriçá [4] também estavam lá. Já
tinham ido à manifestação no enterro do estudante Edson Luís, morto em março
pela Polícia Militar. Foi nesse dia que Maria Alice sentiu pela primeira vez
aquela emoção e a vontade de se manifestar na política. “Foi tão bonito ver
tantas pessoas juntas pedindo a mesma coisa”, afirma a hoje psicóloga Maria
Alice, que tinha 15 anos na época. Ela conta que Carlos Henrique foi torturado e
seu irmão caçula não superou o trauma de ver a família perseguida e presa.
Suicidou-se. “Nada justificava aquela violência. Foi por isso que com 16 anos eu
tomei um rumo completamente diferente na vida. Escolhi ser mãe e tive seis
filhos. Mesmo assim, era eu que cuidava de tudo quando meus pais e meu irmão
eram presos. Sinto muita dor quando falo sobre isso. Sei que nunca vai passar.”

Apesar da grandiosidade, a foto nunca havia sido publicada, nem no dia
seguinte à passeata. “Ela passou batido, havia centenas de imagens e não deu
tempo. Quando vi, eu disse: ‘Poxa vida!’ A gente não vai viver mais essa coisa,
a situação e as pessoas mudaram. Os estudantes não estão mais buscando isso,
todos parecem sem esperança, desligados. Há muito individualismo. O livro conta
uma história que é coletiva”, discorre o fotógrafo. E foi isso que fez Ernandes
reviver aquela quarta-feira com tanta intensidade: “Lembro que voltei para casa
feliz da vida, achando que era uma grande vitória. E era”.