Ciência|Novos conceitos para a vida

Se a criança é filha da avó, a mãe é irmã? Quando os avanços da medicina e a filosofia são um dilema, chamem a bioética.

Confusão
Cláudia e a mãe Rozinete: na lei, quem é a mãe dos gêmeos Bentinho e Victor?

Bioética. Já ouviu falar?

O caso da avó que deu à luz seus netos e outras polêmicas

Por Bernardo Kucinski

Você deve ter visto na tevê. A agente de saúde Rozinete Palmeira Serrão, de 51 anos, deu à luz gêmeos que vieram de óvulos da sua filha, Cláudia Michelle, fertilizados em proveta. Como Cláudia, 27 anos, não podia ter filhos, a avó-mãe “emprestou” a barriga. Um simples caso que complica o conceito de mãe. Pode ser quem dá à luz, e pode não ser. Da mesma forma, a medicina redefiniu a morte quando o coração ainda pulsa. E a clonagem derrubou a tese da Igreja de que a vida começa com a fecundação. Essas complicações todas, provocadas pelos fantásticos avanços da medicina, são discutidas por um campo ainda pouco conhecido de especulação filosófica chamado bioética.

As polêmicas começaram com a invenção da máquina de hemodiálise, nos Estados Unidos, em 1962. Havia muito mais doentes necessitados do que máquinas. Como escolher os que receberiam a hemodiálise? Os mais velhos, por serem mais sábios, portanto mais úteis à sociedade? Ou os mais moços, por terem vivido menos? “Eles decidem quem vive e quem morre” foi o título da reportagem da revista Life sobre esse caso. “Eles” eram um comitê secreto que escolhia os que receberiam a hemodiálise. Assim surgiu o primeiro comitê de bioética, formado por médicos, filósofos e teólogos. Hoje, toda grande instituição hospitalar ou de pesquisa científica tem um comitê de bioética.

Cinco anos depois, o médico Christian Barnard conseguiu fazer o primeiro transplante de coração, na África do Sul. Até então, a morte era definida quando paravam o cérebro e o coração. Mas para fazer transplantes era preciso uma definição de morte com o coração ainda batendo. Surgiu assim o conceito de morte encefálica, quando o cérebro não emite mais sinais elétricos e a respiração só é possível com ajuda de aparelhos, mas o coração ainda pode estar batendo. Na maioria dos países, incluindo o Brasil, exige-se diagnóstico de morte encefálica para que seja permitido o transplante.

Os avanços da biotecnologia trouxeram novos problemas bioéticos. Quais os limites morais da seleção genética de embriões? Tudo que é factível pela ciência é legítimo? Que direito tem uma mãe de gerar um filho que não terá pai? Na Inglaterra, onde nasceram os primeiros bebês de proveta, há muitas histórias de jovens nascidos de óvulos fecundados por doadores anônimos procurando desesperadamente pelo pai, através de testes de DNA enviados aos bancos de sêmen.

Em muitos casos não se sabe sequer como definir as pessoas de um dilema bioético. Que papel atribuir a esse doador anônimo de sêmen? Pai desconhecido? “Não-pai”? Qual o estatuto da mulher que aluga sua barriga para a gravidez, como fez dona Rozinete? Quando embriões e feto passam a ser pessoas?

Início da vida – A Igreja Católica diz que o embrião é uma pessoa porque no momento da fecundação define-se o código genético do novo ser. Mas há cientistas, como Giovanni Berlinguer, um dos mais respeitados biocientistas do mundo, alegando que só com a fixação do óvulo no útero, seis dias depois de ser fecundado, o embrião se ligará à mãe. Antes, o óvulo fecundado, o zigoto, se multiplica, em duas, em quatro, em oito células, à medida que se move em direção ao útero, até se tornar um aglomerado indiferenciado de 32 células, o blastócito. Se não se fixar no útero, o blastócito não evolui, não se inicia a gravidez, nem se sabe se haverá um embrião, se será único, gêmeos, trigêmeos. Outros cientistas entendem que a vida só tem início quando se forma o cérebro do embrião, por volta da quarta semana da gravidez, ou mais tarde