A redescoberta dos quilombos

Mal o país começou a reconhecer as terras dos quilombolas, com um século de atraso, e a sociedade escravista já começou a chiar.

Busca de reconhecimento
Não há dados seguros sobre onde estão ou quantos são exatamente
os quilombolas (estimativas variam entre 1,5 milhão e 2 milhões) nem quais as suas carências

Palmares virou muitos

O Brasil demorou um século para reconhecer, na Constituição, direitos das comunidades negras às suas terras. E setores conservadores ainda empregam pretextos de cunho racial para fazer valer seus interesses econômicos

Por Spensy Pimentel

Em 20 de novembro de 1695 morreu Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, depois da destruição da comunidade pelos bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho. Por muito tempo, a história ensinada nas escolas brasileiras não tinha muito mais a dizer sobre a reação dos negros à escravidão. Trezentos e doze anos depois, a data é Dia da Consciência Negra e o Brasil já não vê a causa de Zumbi como ato isolado. Palmares virou muitos.

Levantamentos já aceitos pelo governo federal mencionam mais de 3.500 comunidades remanescentes de quilombos espalhadas por 24 estados da Federação – só não há registros no Acre, Roraima e Distrito Federal. Pesquisadores estimam haver mais de 5 mil. O termo “quilombo” tem origem no dialeto banto, de Angola – algo como “acampamento guerreiro”. Palmares, antes de ser designado quilombo, foi antes república e mocambo – outra palavra banto, para “abrigo” ou “esconderijo”.

É consenso hoje que quilombo define não só as comunidades formadas por escravos fugidos, mas também as que reuniam alforriados, e casos em que os negros ganharam terras como herança ou prêmio por seu trabalho. Havia ainda antigos escravos que se tornaram posseiros após a conquista da liberdade. Em comum, qualquer que seja o caso, há o abandono a que esses grupos foram submetidos, a discriminação e falta de cidadania.

Uma das formas de começar a corrigir essa dívida social seria a regularização das terras pertencentes a essas comunidades. Um século depois da Abolição, a Constituição de 1988 passou a assegurar, no artigo 68 das disposições transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Glória Moura, professora da Universidade de Brasília e, à época, integrante do Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte, assistiu aos esforços pela inclusão dos direitos dos quilombolas na Carta. “Apenas seis constituintes se reconheciam como negros entre os mais de 500”, lembra.

Desde 1988 pouco mais de 100 comunidades tiveram terras tituladas. Até 2002, a falta de consenso sobre o modo como executar essas ações travou o processo. No plano federal, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, assumiram o tema. E, sob pressão do movimento negro, estados como Pará, Maranhão, Bahia, São Paulo e Mato Grosso também estabeleceram legislação e concederam títulos a comunidades. No final de 2003 o presidente Lula assinou o decreto 4.887, que incumbiu ao Incra a responsabilidade pela titulação, mediante estudo antropológico sobre as áreas reivindicadas. À Fundação Palmares cabe cadastrar as comunidades assim auto-reconhecidas.

Grupos de direita e ligados a “proprietários” reagiram. Em 2004 o então PFL, hoje DEM, foi ao Supremo Tribunal Federal com Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o decreto de Lula, com o argumento de que não seria possível fazer regulamentação da Constituição por decreto.

Em setembro uma manifestação no Congresso reuniu mais de 500 representantes quilombolas de todo o país. Cobravam agilidade nas titulações e protestavam contra projeto do deputado Valdir Colatto (PMDB-SC), que propõe anular o decreto de Lula.