História|Todo o poder aos sovietes

Entre a tirania stalinista e o legado do bem-estar social decorrente da sombra revolucionária, aqueles dez dias que abalaram a Rússia, em 1917, são essenciais à compreensão do mundo contemporâneo

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“Paz, pão e terra”: lema dos bolcheviques, liderados por Lenin

Por Igor Fuser

A expressão “os dez dias que abalaram o mundo” ficou famosa a partir do título do livro em que o jornalista norte-americano John Reed relata, como testemunha ocular, o momento em que os trabalhadores assumiram o poder na primeira revolução socialista vitoriosa, em 25 de outubro de 1917. O Estado que emergiu daquele movimento – a União Soviética – já desapareceu, mas o mundo ainda sente os tremores da tomada de poder pelos comunistas liderados por Lenin. “Toda vez que os trabalhadores desafiarem a dominação e a exploração sob o capitalismo, a Revolução Russa será referência”, afirma o cientista político Lúcio Flávio de Almeida, da PUC-SP.

Noventa anos depois, turistas fazem fila para visitar o corpo embalsamado de Lenin, na Praça Vermelha, em Moscou. Na saída do mausoléu de mármore negro, o visitante percorre os túmulos dos “heróis da União Soviética”, enterrados ao pé das muralhas do Kremlin, fortaleza medieval que é o próprio símbolo do poder no país. Conquistas, contradições e fracassos da revolução estão representados naquela galeria mortuária. Lá está também Josef Stalin, um dos tiranos mais brutais do século passado. Lenin reprovava a maneira truculenta de Stalin tratar as divergências. O ditador bigodudo, que o sucedeu em 1924, repousa numa cova igual à de outros dirigentes, como Leonid Brejnev, que ordenou a invasão da Tchecoslováquia (1968) e do Afeganistão (1979).

A Praça Vermelha abriga, por outro lado, personagens admiráveis como o marechal Georgi Jukov, comandante do Exército Vermelho em 1945. Jukov esteve à frente das tropas que derrotaram os nazistas nas batalhas decisivas da 2ª Guerra Mundial e comandou a vitória final em Berlim, quando um soldado soviético balançou a bandeira da foice e martelo no topo do prédio semidestruído do Parlamento alemão. Sem o esforço titânico dos soviéticos, que amargaram 20 milhões de mortes na luta contra o nazismo, o conflito provavelmente teria tido outro desenlace. Lá está, também, o próprio John Reed, militante de esquerda dos Estados Unidos que chegou a combater ao lado dos revolucionários durante a guerra civil que se seguiu a 1917 e morreu de tifo em 1920, num hospital de Moscou.

Mas o que mais me impressionou no breve trajeto pelo túnel do tempo da ex-URSS foi a homenagem a um famoso por outro motivo. Todos os túmulos ao lado do Kremlin estavam, quando estive lá, em julho, enfeitados por um par de cravos vermelhos. Apenas um, entre dezenas de mortos ilustres, recebera de mãos anônimas flores comuns: o do cosmonauta Yuri Gagarin, primeiro ser humano a viajar ao espaço, em 1961, a bordo da nave Vostok. Sua presença ali sublinha o avanço econômico, tecnológico e a admiração alcançados pela URSS antes de esbarrar nos limites que a fizeram naufragar.

Na Rússia capitalista de hoje, o aniversário da revolução será desdenhado pela agenda oficial. O presidente Vladimir Putin, ex-agente da KGB, a polícia secreta do regime soviético, governa com apoio dos antigos “oligarcas” do Partido Comunista que privatizaram, em benefício próprio, as fatias mais gordas do patrimônio estatal. A herança soviética divide opiniões. “Há polarização entre os que encaram a revolução com simpatia ou como catástrofe”, observa o economista Alexander Kolganov, da Universidade de Moscou. “Entre os apoiadores há outra divisão: os nacionalistas, para quem a revolução fez da Rússia segunda maior potência do mundo; e os socialistas, que vêem nos bolcheviques os seus ideais de justiça social.”

Na avaliação de Kolganov, um legado mais concreto é o conjunto de conquistas sociais que ainda vigoram no país, como o largo alcance da educação e saúde. “Nem Yeltsin (o presidente que liderou a transição para o ca