Cultura|Viagem pelos clássicos

Por Flávio Aguiar

Alguns dos mais importantes vestibulares deste ano, como USP e Unicamp, repetem os livros sugeridos para as provas do ano passado. A leitura dessas obras históricas, porém, é muito mais do que oportunidade de bom desempenho. É uma forma de proporcionar a si próprio uma dupla viagem, no tempo e na nossa literatura. O melhor de tudo será se os viajantes, os leitores, compreenderem que a viagem vai além do vestibular. Na verdade, é um convite para “o depois”, para com mais calma, sem as aperturas da competição por um lugar na universidade, mais maduros talvez, se deliciarem com essas obras que lançam luzes sobre a história do Brasil, de Portugal e do mundo.

Auto da Barca do Inferno
Gil Vicente
Em 1517, o colonialismo recém-desembarcava no futuro Brasil e essa trama algo cômica expunha dos pequenos aos grandes vícios sociais que portugueses para cá traziam. Os autos – peças da Idade Média – tinham caráter religioso e estrutura muito diferente da do teatro atual. Não havia atos nem cenas; tinham por tempo o tempo divino e por espaço o universo à vista de Deus. O texto de Gil Vicente se passa no embarcadouro – de onde naus partem para o céu, o purgatório ou, sempre as mais carregadas, o inferno. Os personagens do cotidiano lisboeta, como o fidalgo, o sapateiro, a alcoviteira, o padre corrupto, o agiota, devem fazer face ao Anjo, da barca para o céu, e ao Diabo, da barca para o inferno. Sem exceção, acabam na barca do inferno. De uma simpatia algo rascante, o Diabo não perdoa os personagens por seus pecados como prepotência, ambição, luxúria, revelando-se um grande advogado de acusação.

Memórias de um Sargento de Milícias
Manuel Antonio de Almeida
Esta obra do jornalista carioca foi publicada em folhetins (em sucessivos dias, em jornal) de 1854 a 1855. Descreve a época em que dom João VI estava no Brasil e as estripulias de Leonardo e Luisinha para sobreviver numa sociedade desorganizada, dividida entre arrogantes senhores de terras e escravos submissos. No meio cresce uma incipiente classe média empobrecida, da qual nossos jovens apaixonados fazem parte. É um Brasil ainda lusitano, como o jovem Leonardo, filho bastardo de imigrantes portugueses. O livro define, de acordo com um ensaio do professor Antonio Candido, a “dialética da malandragem”; figura que se tornaria um dos emblemas da identidade nacional. É o personagem que está sempre a um passo da ilegalidade, ora a trespassa, ora volta para ela, e assim ajuda a entender esse Brasil onde, muitas vezes até hoje, os favores pessoais contam mais do que as leis, os direitos e os deveres.

Iracema
José de Alencar
O autor cearense foi o grande mapeador literário do Brasil. Descreveu o sertão (O Sertanejo, 1875), o pampa (O Gaúcho, 1870), o interior paulista (Til, 1872); a então modernidade (Senhora, 1875, Sonhos d´Ouro, 1872, Lucíola, 1862); a formação da nação (O Guarani, 1857, e Iracema, 1865). O romance narra em prosa exaltada a lenda da virgem dos Tabajaras, detentora do segredo da jurema, erva algo alucinatória que revela o mundo dos sonhos a quem dela sorve. Iracema deveria permanecer “a virgem dos lábios de mel”, mas apaixona-se por Martim, conquistador português com quem tem o filho, Moacir, “primeiro cearense”, cujo nome o autor traduz por “o filho da dor”. Iracema é um anagrama de América. Diz-se que foi de invenção de Alencar, embora alguns defendam que o nome já constava de crônicas antigas. O certo é que o romance o popularizou, a ponto de uma atriz do século passado ter adotado “Iracema de Alencar”!

A Cidade e as Serras
Eça de Queirós
A seqüência cronológica propõe a volta ao universo da literatura portuguesa. O romance de Eça foi publicado em 1901, um ano após sua