História|Um brilho no escuro

Vinte anos depois do acidente radiológico com o césio-137, em Goiânia, vítimas ainda procuram ter seus direitos reconhecidos e vivem de luto, sem saber 'quem será o próximo'


Sobrevivente
Roberto Alves lembra da luz azulada do césio em sua mão. O episódio custou-lhe o braço direito

Por Rubem Roschel

Num momento em que o Brasil rediscute programa
nuclear, o país ainda se ressente de uma perturbadora ferida aberta há
20 anos, quando a cidade de Goiânia viveu um pesadelo sem precedentes
após o rompimento de uma cápsula de césio-137. A vida de milhares de
pessoas foi afetada pelo vazamento de 19,6 gramas do pó radioativo. O
atendimento às vítimas desse acidente não serviu de referência para
casos futuros. Erros, desinformação e inabilidade no trato com a
substância puseram em risco a vida de milhares de pessoas. O tratamento
e o acompanhamento dos acidentados e a forma de armazenamento das 13,5
toneladas de lixo radioativo recolhidas após o acidente ainda são
questionados.

Não
há precedentes na história nem parâmetro que permitam avaliar a atuação
da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) e das autoridades da
área de saúde. Diferentemente de casos como o das usinas de Three Miles
Island (EUA) e de Chernobyl (Ucrânia), de características nucleares e
que atraíram a atenção de pesquisadores do mundo todo, o caso de
Goiânia – o maior acidente radiológico do mundo – é pouco lembrado no
Brasil. “É como se quisessem varrer o lixo para debaixo do tapete”,
compara Odesson Alves Ferreira, presidente da Associação das Vítimas do
Césio-137 e do Conselho Estadual de Saúde de Goiás. Para ele as
autoridades têm interesse nesse silêncio para que o assunto perca força
e não haja reparação. “Fiquei impedido de trabalhar e ainda sofro todo
tipo de discriminação. Não pude mais pensar em futuro.”

A
história do acidente começa em 1985, quando foi demolido o prédio do
Instituto Goiano de Radiologia, que passara ao Instituto de Previdência
e Assistência Social de Goiás. Nenhum dos institutos e tampouco a Cnen
se lembraram de retirar dali um aparelho de radiografia carregado com
uma bomba de césio-137. Em setembro de 1987, Roberto Alves e Wagner
Mota entraram nas ruínas e retiraram de lá a peça cilíndrica de chumbo
para vender como sucata. “O local estava abandonado. Retiramos a peça e
a levamos em um carrinho de mão”, conta Roberto. Do local, onde hoje
funciona o Centro de Convenções de Goiânia, eles caminharam cerca de
500 metros até sua casa e iniciaram a desmontagem.

‘Olha lá os irradiados’
Passaram mal, com dor de cabeça, febre, diarréia e vômitos. Decidiram
vender a peça ao ferro-velho de Devair Alves Ferreira para comprar
remédios. Lá a cápsula de chumbo seria aberta. Ao seu núcleo se prendia
um recipiente semelhante a uma marmita metálica. Dentro, uma pequena
quantidade de pó branco, parecido com sal de cozinha empedrado, chamava
a atenção por emitir um brilho azulado, sobretudo no escuro. “Era o
brilho da morte”, disse na ocasião Devair, que morreu anos depois com
câncer no fígado.

Ivo,
irmão de Devair, levou uma “pedrinha” para casa. Sua filha Leide das
Neves, de 6 anos, passou um bom tempo brincando encantada com o brilho.
“Ela comeu um ovo cozido enquanto brincava. As mãozinhas estavam sujas
e ela acabou ingerindo aquele pó”, conta Lurdes das Neves Ferreira, mãe
de Leide. “Em pouco tempo a boquinha dela ficou roxa”, lembra. O
mal-estar que acometeu várias pessoas foi creditado a intoxicação
alimentar e, posteriormente, a doença contagiosa. Hospitais e farmácias
da região próxima ao centro de Goiânia passaram a ter grande procura.
No dia 28 de setembro, Maria Gabriela, mulher de Devair, levou parte do
cilindro ao Serviço de Vigilância Sanitária de Alimentos. No dia
seguinte, 16 dias depois do vazamento, chegou-se à conclusão: todos
foram expostos à radiação.

A
Comissão Nacional de Energia Nuclear montou uma operação de guerra.
Milhares de pessoas foram levadas para o Estádio Olímpico. As com
índices mais