Trabalho|Tolerância com o perigo

Agentes cancerígenos de uso tolerado no trabalho: se o Brasil não combatê-los, herdará uma epidemia de câncer ocupacional.


Doença crônica
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Por Cida de Oliveira

Tolerância venenosa

Substâncias com potencial cancerígeno ainda têm seu uso tolerado como
matéria-prima ou até como instrumento de trabalho. Se isso não for combatido,
o Brasil pode herdar uma epidemia de câncer ocupacional nas próximas décadas

Há três anos o ganho repentino de 20 quilos intrigou o
químico Luís João da Cruz, de São Bernardo, no ABC paulista. Até que
exames revelaram o mau funcionamento da tireóide. Pior: uma alteração
sanguínea chamada síndrome mielodisplásica. O diagnóstico – a meio
caminho da leucemia – contraria o dos médicos da Basf, onde ingressou
há 12 anos. Para eles, seu problema era atribuído a fatores genéticos e
étnicos. Mas os sangramentos constantes ao se barbear o levaram a
procurar outros especialistas e, por fim, um médico do Sindicato dos
Químicos do ABC.

“Para lavar os
tachos e limpar o chão, eu usava uma mistura de benzeno, xileno,
metanol, acetato de metila e outros solventes reaproveitados. Hoje sei
que a máscara e as roupas que usava não me protegiam dos vapores desses
produtos”, afirma. Luís já retirou um tumor benigno mamário e em breve
começará novo tratamento no Hospital do Câncer. O sonho do ajudante de
seguir carreira na empresa o levou a entrar na faculdade de Química.
Formou-se ano passado, aos 36 anos. Afastado do trabalho, não pôde
alcançar promoções. Hoje, ensina química em um cursinho gratuito para
alunos carentes.

Leucemia é o
nome dado a um conjunto de tumores malignos devido ao acúmulo de
células imaturas na medula óssea, onde o sangue é produzido. É um entre
os cerca de 100 tipos de câncer, doença que é a segunda maior causa de
morte entre os brasileiros acima de 40 anos. Perde apenas para as
complicações cardiovasculares. Em 2005 o Sistema Único de Saúde
registrou 423 internações, 1,6 milhão de consultas ambulatoriais e
consumiu 1,16 bilhão de reais com a doença. A cada mês são tratados 128
mil pacientes em quimioterapia e 98 mil em radioterapia. De cada três
novos casos, um será fatal.

Não
se tem uma medida exata de quantas dessas ocorrências foram provocadas
pelo trabalho. O Instituto Nacional do Câncer (Inca), ligado ao
Ministério da Saúde, estima entre 2% e 4% delas. Uma publicação lançada
em abril pela Federação Internacional dos Metalúrgicos (IMF, na sigla
em inglês), para a campanha Câncer Ocupacional/Câncer Zero, revela que
os tumores são responsáveis por um terço das mortes causadas por doença
ocupacional no mundo. Outro estudo, divulgado pela Organização Mundial
da Saúde (OMS), afirma que os riscos dos ambientes de trabalho levam a
10% das mortes por câncer de pulmão.
No Brasil, a falta de
estatísticas se deve à baixa de notificação dos casos. Por temer pelo
emprego, muita gente evita ou adia cuidados médicos. A Comunicação de
Acidente de Trabalho (CAT), principal instrumento para gerar dados,
procedimentos de tratamento e ações preventivas, raramente é emitida em
casos de câncer. Não são raros médicos do trabalho que colaboram para
isso, acreditando que assim protegem o interesse do empregador. E pouca
gente sabe, mas a CAT pode ser emitida pela empresa, pelo próprio
trabalhador, pela entidade sindical, por médicos, magistrados, membros
do Ministério Público, bombeiros e outras autoridades. Por fim, há
também peritos do INSS que, por desinformação ou má-fé, só aceitam a
CAT emitida pelo patrão.

Levantamento
inédito feito pela professora Anadergh Barbosa de Abreu Branco, do
Laboratório de Saúde do Trabalhador da Universidade de Brasília (UnB),
dá uma idéia da subnotificação. A pesquisadora constatou que, em 2004,
o INSS concedeu 73.905 auxílios-doença e aposen