Entrevista|Arqueologia da CLT

Para o professor da USP Alfredo Bosi, a legislação trabalhista é positivista – e não fascista. Modernizou as relações no mundo civilizado ao incorporar necessidades dos trabalhadores e impediu o colapso social até mesmo nas grandes crises do Primeiro Mundo

Por Flávio Aguiar

Imagine um Brasil onde os trabalhadores não têm férias nem descanso remunerado, não há salário mínimo, as mulheres não têm licença-maternidade e a jornada de trabalho não tem limite. Esse era o mundo antes das leis trabalhistas, que começaram a ser promulgadas em 1931, com a criação do Ministério do Trabalho, logo depois da Revolução de 1930. Era? Esse mundo pode estar à nossa frente, com a feroz desregulamentação das relações de trabalho promovida com ares de “modernização” pela ideologia neoliberal, que tomou conta da mídia conservadora no Brasil – e também de uma parte do Congresso.

Em 1943, durante a ditadura do Estado Novo, foi promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, que reuniu num corpo único as leis anteriormente definidas. Durante décadas prevaleceu a interpretação, tanto liberal como de esquerda, de que o espírito da CLT fora inspirado na Carta del Lavoro, do fascismo italiano. Mas o professor Alfredo Bosi diz nesta entrevista que não é bem assim.

Alfredo Bosi é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo e membro do Instituto de Estudos Avançados da USP. É considerado um dos maiores críticos literários brasileiros. Católico e socialista militante, foi assessor por muitos anos da Pastoral Operária. Pôs-se a estudar as condições e a legislação do trabalho no Brasil, chegando a conclusões bastante originais, que ele apresenta nesta arqueologia que faz das origens da legislação trabalhista no país.

Como se construiu a CLT no Brasil?

Para começo de conversa, é necessário pensar por que o grupo que assume o poder com a Revolução de 1930 foi mais sensível à questão do trabalho do que todos os outros que dominaram a República Velha, a República do Café com Leite. É necessário fazer uma prospecção histórica na política do Rio Grande do Sul, pelo menos desde a fundação do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), em 1882, por Júlio de Castilhos (governador do RS de 1893 a 1899) e seu grupo, e fazer uma comparação entre as atitudes desse grupo e aquela do Manifesto Republicano Paulista, lançado um pouco antes. No caso dos gaúchos, o problema da abolição estava intimamente ligado ao da república. Não haveria república sem abolição. República e abolição formavam uma só bandeira. No caso de São Paulo, os fundadores do Partido Republicano Paulista queriam mudar a estrutura política, a estrutura do poder, substituindo dom Pedro II, mas declaravam literalmente que o problema da escravidão deveria ser resolvido com o tempo. O que lhes interessava era o subsídio à imigração européia. Eles já estavam conscientes de que a escravidão cedo ou tarde chegaria ao seu termo e que era preciso substituí-la por um trabalho remunerado, e não haveria outro jeito senão chamar imigrantes italianos, alemães etc., como de fato aconteceu.

Não havia aí também o ideal de “branqueamento” do país?

Sim, para os que defendiam essa perspectiva, julgados do ponto de vista da “eficiência”, da “pontualidade”, dessas “virtudes modernas”, os colonos europeus eram vistos como mais “eficazes” que os negros. Agora, é curioso que, até onde estudei, embora já houvesse muito antes uma colonização alemã e italiana, o PRR nunca teve como tônica a questão do subsídio. Eles achavam que a imigração devia continuar espontânea, era bem-vinda, mas o problema central era a criação do trabalho livre. E de fato, por diversos motivos, o Rio Grande do Sul foi uma das províncias a se antecipar na alforria, até em massa, dos escravos. Esse seria o primeiro momento para entendermos a ligação da burguesia gaúcha, ou de sua classe política, com o prob