Crônica|A invenção do churrasco

Da primeira fornada feita por Noé ao fogo de chão, a história é repleta de indícios: o Criador tem um pé no pampa. E é solene como um ser solitário diante de um assado regado a mate e canha

Por Flávio Aguiar

A primeira churrascada de que se tem notícia foi Noé
quem fez. Quando saíram da arca, ele pegou as aves e reses que boiaram
com ele por 40 dias e noites e, até hoje ninguém sabe muito bem por
quê, assou-as numa gigantesca fogueira. Conta o Texto Sagrado que o
Criador apreciou o “suave cheiro”. Em seguida, instituiu a sucessão das
sementes e das searas, do frio e do calor, do verão e do inverno e do
dia e da noite. O que prova que: 1) o churrasco tem poderes
civilizatórios; 2) o universo, antes do dilúvio, devia ser meio
bagunçado; e 3) o Criador tinha um pé no pampa.

O
pampa sul-americano tornou-se território por excelência do churrasco
graças a uma Opera Ad Maiorem Dei Gloriam, Obra para Maior Glória de
Deus. Foram os jesuítas, no século 17, que introduziram naqueles campos
sem fim o gado. E eles (os animais) fizeram como os que por milagre
escaparam das brasas de Noé: cresceram e multiplicaram-se. Os
religiosos reuniam índios em missões, povos ou reduções – que vem do
verbo em latim reducere, reconduzir -; os jesuítas acreditavam que os
nativos das Américas tinham simpatia pelo Diabo e deveriam, portanto,
ser “reconduzidos” à fé cristã. Cada redução dispunha de uma estância,
onde cavalos e reses medravam à solta e era apresados conforme a
necessidade. Daí se tem uma primeira e saborosa notícia de churrasco à
barbacoa, ou de fogo de chão.

Quem
conta é o padre Antonio Sepp, austríaco que aqui chegou no final do
século 17, com 30 e poucos anos, e ficou para sempre. Agauchou-se,
seguindo o exemplo de Noé. Um dos padres da Missão de Yapeyú, do lado
de lá do Rio Uruguai, recompensou um nativo por seu labor e bom exemplo
com um boi e um arado para prover seu futuro. Sabiamente, o nativo não
pensou em futuro nem nada. Chamou a mulher, os filhos, e picotou o
arado e o boi. Com o primeiro fez uma fogueira. Usou a graxa do boi
para alimentar o fogo (como fizera outrora, na Grécia Antiga, o tal de
Prometeu, outro gaúcho desgarrado na antiguidade, que deu aos homens o
fogo). Cravou os pedaços do boi em espetos e enfiou-os no chão. Quando
um dos lados tostava, ele virava o espeto. E ia tirando lascas do lado
bom, seguido pela mulher e pelas crianças. Apesar de escandalizado, o
bom servo do Senhor não deixa de descrever a alegria dos pequenos, com
as bochechas e os dedos escorrendo a farta gordura. Talvez por
esquecimento, só faltou ao padre Sepp descrever a farinha de mandioca.

Mesmo
os nativos que não iam às reduções, como os bravos minuanos, charruas,
guaicurus e outros, foram cativados pelo hábito. Portugueses e
espanhóis que se punham a caçar aquela gadaria sem fim tinham
predileção por aproveitar-lhes o couro. Os nativos, então, assavam a
carne desprezada como fizeram o guarani e sua família, comiam a não
mais poder e, depois de beber muita água, iam dormir nas florestas.
Trocando a água por cerveja ou vinho e a floresta por uma rede ou cama,
ainda hoje a história se repete.

Mais
tarde, as sucessivas guerras continuariam disseminando a prática desses
assados. Batalhões eram divididos em “fogões” que congregavam até dez
homens. Um deles levava o charque (a carne salgada), providenciava o
abate de uma rês, em geral confiscada. Levava sal grosso e uma trempe
(grelha com pernas). Entre batalha e outra, o assado era feito na hora
e devorado imediatamente. E assim o churrasco se consagrou como cozinha
prática e, sobretudo, masculina.

É
claro que o churrasco é festeiro. Mas sempre há uma hora em que,
sozinho, diante das estrelas, “uno”, como se diz na linguagem
internacional do pampa, o vivente prepara-se para assar seu naco de
carne, munido de cuia de chimarrão e de um trago de canha. É aí, nessa
solidão vasta do mundo, que se encontra naquela situação que minha vó
pampeana descrevia assim: solito