História|Gabo, cigano do imaginário

São 80 anos de vida e 40 de Cem Anos de Solidão. Mas que importa o calendário? Para o artesão do tempo Gabriel García Márquez, ele é apenas um movimento contínuo, fluido e circular esculpido a cada letra

 

Por Maria Angélica Ferrasoli

José Arcadio Buendía, patriarca de Cem Anos de
Solidão, acordou bem disposto nessa outra terça-feira, tão diferente
daquela equivocada em que tivera de ser amarrado ao castanheiro por sua
lucidez extrema. Era dia 6 de março de 2007. O escritor Gabriel García
Márquez, seu criador, acabara de completar 80 anos. E Macondo já não
era uma aldeia de 20 casas de barro e taquara à beira de um rio de
águas diáfanas, mas o povoado imortalizado de Gabo, a cidade dos
espelhos (ou das miragens) que o levou ao Prêmio Nobel de Literatura em
1982 e há quatro décadas continua a fascinar leitores a partir de um
veloz caleidoscópio de histórias cujo eixo central não se desgasta,
aliás, alimenta-se da luz do tempo.

A
Macondo de García Márquez se chama Aracataca, na Colômbia, onde ele
nasceu e para onde voltou com a mãe quando foi preciso vender a casa
dos avós. É assim, ao menos, que o escritor dá início a Viver para
Contar, o primeiro capítulo da autobiografia, lançado há cinco anos.
Ali estão, para quem quiser reconhecer, os principais personagens de
Cem Anos de Solidão na sua forma mortal, habilmente embaralhados em
qualidades e obsessões, mas tão cristalinos quanto os frascos
milagrosos de Melquíades, o cigano cuja sabedoria estimulou sem trégua
a efervescente imaginação do primeiro Buendía e acabou por registrar em
pergaminhos cifrados toda a história da família um século antes de seu
final.

Ali estão o avô de Gabo
com o morto que lhe pesa às costas, o sábio catalão, os amigos do
último Aureliano, a United Fruit Company (a companhia bananeira que
tantas desgraças havia de trazer a Macondo) e, principalmente, a casa
eternizada do escritor. “Os quartos eram simples e não se diferenciavam
entre si, e só precisei dar uma olhada para perceber que em cada um de
seus incontáveis detalhes havia um instante crucial da minha vida”,
relata.

Para o crítico
literário norte-americano Harold Bloom, um dos mais conhecidos do mundo
ocidental, Cem Anos de Solidão é “um milagre que só acontece uma vez,
menos um romance do que uma Escritura, a Bíblia de Macondo”. Em sua
avaliação, o livro traz “uma espécie de fadiga estética: a quantidade
de vida, em cada página, ultrapassa nossa capacidade de absorção”.
Talvez tenha sido essa sintonia explosiva de existência e magia – que
se reconhece e expande no chamado realismo mágico, ou fantástico,
florescido em grande parte da América Latina durante a longa noite das
ditaduras – a razão para que tantos tenham tentado “explicar” Macondo e
sua gente, até que o próprio García Márquez resolveu pôr os pingos nos
is e apresentar sua versão autobiográfica.

Até
agora não publicou o segundo volume – preferiu, antes, lançar o belo
Memórias de Minhas Putas Tristes, quase um conto com sabor de poema.
Segundo as más línguas do noticiário, o colombiano não quer resgatar os
motivos da briga que teve com o também escritor Mario Vargas Llosa em
1976, que lhe rendeu um olho roxo e na qual, consta, pelo menos uma
senhora estava envolvida.

Delicadeza e jornalismo

É bem verdade que até uma história assim corrente do cotidiano não
soaria vulgar ou agressiva na escrita primorosa de García Márquez.
Tanto em sua obra-prima quanto nas dezenas de outras que já assinou,
entre contos e romances (muitos deles levados para o cinema), episódios
que por si só seriam de revirar o estômago do leitor são narrados com
uma delicadeza de coronel Aureliano Buendía em tempo de ourives, quase
estonteante de tão precisa.

É
o caso do estupro de Cândida Erêndira (e sua Avó Desalmada), vendida
ainda menina para começar a pagar os danos que causou à família: o que
Erêndira vê não é seu agressor, mas fantásticos peixes multicoloridos
boiando à s