O grande tapa na cara, por Iara Bernardi
Um dado triste sobre a violência contra a mulher diz respeito ao seguinte: na maioria absoluta dos casos, seus algozes têm algum laço de parentesco ou amizade com a vítima, incluindo marido, ex-marido, companheiro, namorado, etc.
Tal constatação chega a ser lugar-comum à maioria das pessoas, pois cotidianamente ficamos sabendo de alguma mulher que foi assassinada “em legítima defesa da honra”, ou estuprada ou espancada. Porém, essa realidade, que não chega a espantar de tão comum, infelizmente, vem sendo comprovada e analisada por várias pesquisas.
Um desses estudos, que resultou num livro chamado “Primavera já Partiu – Retrato dos homicídios femininos no Brasil”, patrocinado pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos, levantou informações sobre a violência contra a mulher em 15 Estados brasileiros.
Os números desse levantamento indicam que, enquanto nos casos de homicídios de homens, menos de 40% das vítimas tinham relação de parentesco com seus assassinos, nos assassinatos de mulheres esse índice supera os 70%. A agressão contra o sexo feminino, portanto, na grande maioria das vezes parte de quem é próximo, o que multiplica a insegurança feminina.
O livro aponta que metade dos crimes ocorre nos finais de semana. Quanto à agressão às mulheres nesses dias, talvez a explicação esteja nas palavras de um dos entrevistados pelos pesquisadores: “O homem tem compromisso de atender à esposa pelo menos uma vez por semana (…) isso sempre acontece durante o final de semana. Se, por acaso, ela não quiser é porque está te enganando (…) e se isso fica certo não saio para procurar outra, mas essa leva pelo menos uma boa surra.”
Em linhas gerais, o que essa e outras pesquisas apontam é que a cultura que leva a comportamentos determinantes para a chamada violência de gênero é muito comum no Brasil e está presente em todas as classes sociais, independente de raça ou religião.
Por todas essas razões, tomei um susto quando, recentemente, ouvi no rádio músicas que vêm fazendo sucesso – e, ao que tudo indica, serão hits no próximo carnaval – e que falam que “tapinha não dói” ou, então, que a mulher gosta de levar “tapa na cara”.
Ao contrário de parecerem apenas inocentes ritmos populares, tais músicas são reveladoras de um estado de coisas extremamente negativo para as mulheres.
Quando veiculadas em larga escala pelos meios de comunicação de massa, configuram estímulo para legitimação e manutenção dessa situação degradante, especialmente para crianças, adolescentes e jovens, que ainda não têm formação suficiente para “filtrar” tais mensagens.
A existência desse tipo de música já é, em si, indicativo do atraso da nossa sociedade, pois, se compositores musicais fazem obras de um conteúdo tão baixo, é porque acreditam que têm mercado, no que são, aliás, ajudados pela falta de senso crítico daqueles que a veiculam e pela indiferença ou omissão dos demais quanto ao seu conteúdo. A questão que surge ainda, nesse e em outros casos, é saber se realmente há mercado para esse tipo de coisa ou, na verdade, falta de opção das camadas populares, entupidas e condenadas a conviver com lixo cultural da pior espécie, não só na música, no rádio, mas especialmente, na TV.
O que não podemos é deixar de lamentar e protestar que a violência contra a mulher, uma temática tão cara para todos aqueles/aquelas que lutam pela igualdade de gêneros no nosso país, tenha um estandarte negativo dessa magnitude.
Fico pensando no enorme contingente de mulheres que convivem ou conviveram em ambiente de violência ou ameaças. Em meio a um ritmo alegre e dançante, tais músicas devem soar como um grande e irônico escárnio. Para elas, tais melodias, são isso sim, um tapa na cara desrespeitoso, injusto e lamentável.
O que se espera é que as rádios e tvs que têm compromisso e respeito com a nossa cultura e as mulheres brasileiras, não toquem e nem veiculem essas músicas preconceituosas e que