O sucateamento da saúde pública de São Paulo
Artigo do médico João Paulo Cechinel Souza(*), na Agência Carta Maior
Os mutirões da saúde, proclamados e anunciados por José Serra como sua principal plataforma de trabalho na Saúde, têm na falácia do discurso e na grande mídia seus sustentáculos operacionais. Para os seguidores de teorias inocentes e despudoradas, como se faz parecer o dito presidenciável, os mutirões são a salvação da lavoura em meio a uma grande seca. Traz a resolução dos mais diversos problemas, que cotidianamente enfrentamos no país nessa área, através da contratação de alguns profissionais, que sairiam Brasil afora com essa nobre tarefa.
Numa análise simplista pode parecer plausível. E é – para problemas pontuais, que, diga-se de passagem, são raros na assistência à saúde. Em sua maioria, cirurgias para correção de catarata e problemas de próstata (apenas para citar aqueles referidos por Serra com mais frequencia), necessitam de avaliação pré e pós-operatória imediatas, além, obviamente, do seguimento ambulatorial dos pacientes submetidos a tais intervenções.
Infelizmente, como já escrevemos e evidenciamos em artigo anterior (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16821), o acompanhamento prolongado e qualificado dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) não parece ser a preocupação do ex-governador de São Paulo.
Para se ter uma idéia melhor do que estamos falando, basta trazer aos leitores a avaliação de 350 mil usuários do SUS de São Paulo, efetuada pela própria Secretaria de Estado da Saúde (SES) – e cuja publicação só foi divulgada (tardiamente) após esforços oriundos de várias instituições e entidades vinculadas à Saúde no Estado, além de alguns órgãos de imprensa (http://www.saude.sp.gov.br/content/vuuecrupru.mmp). Resumidamente, a maior parte desses cidadãos relata ausência de vacinas do calendário básico em diversas unidades de saúde da SES, analgesia durante o parto realizada com “panos quentes” e a demora absurda na realização de diversos exames complementares.
No município de São Paulo, o atual prefeito Gilberto Kassab, seguidor e fiel escudeiro de Serra, pauperizou a tal ponto alguns dos hospitais sob tutela da Autarquia Municipal, que há vários meses, por exemplo, não existem colchões em hospitais da Zona Leste da cidade – uma das regiões de concentração das famílias mais carentes economicamente, enquanto a população atendida se aglomera dentro dos pronto-socorros como animais num abatedouro. A estratégia é clara – e antiga: o próprio Serra, junto com FHC, já a utilizou diversas vezes antes, durante sua gestão no Governo Federal, com os hospitais e universidades federais. Primeiramente, precariza-se ao máximo uma das “portas de entrada” da população aos serviços oferecidos pelo Estado (no caso, um pronto-socorro, hospital ou unidade básica de saúde).
Num segundo momento, aproveita-se a divulgação midiática da situação (demora no atendimento ou na realização de exames) e sua reverberação junto à população atingida pelo caso. Apresenta-se, então, a estratégia “milagrosa” – e sofismável, que há quase duas décadas permeia o dia-a-dia do atendimento à saúde no Estado de São Paulo: a entrega dessas instituições às Organizações Sociais (OSs).
Para se ter uma ideia da dimensão do problema, essas mesmas OSs, regulamentadas pela Lei 9637/98 (mas instituídas por Medida Provisória anterior), têm autorização para contratar (com dinheiro público) funcionários e serviços sem a necessidade de se realizar qualquer concurso ou licitação. Parece estranho, não? Mas assim têm funcionado em boa parte das instituições vinculadas à SES de São Paulo e que prestam atendimento por essas latitudes. A forma sui generis de administração de recursos oriundos do erário público encontra na alegação de que são entidades “sem fins lucrativos” a explicação nada plausível e totalmente incompreensível que Serra pretende utilizar de um lado a outro do país – e Geraldo Alckmin terminará de implantar em São Paulo. Os privilégios de alguns poucos diretores e gestores privados e o oferecimento à população, em contrapartida e como regra absoluta, de serviços de baixa complexidade tecnológica (que não realizam transplantes ou sessões de hemodiálise, por exemplo), já foi alvo de questionamento de diversas entidades e do próprio Ministério Público do Estado – que encontraram nessas aberrações administrativas uma forma quase perfeita de ludibriar uma série princípios legais ora vigentes no país, como a lei de licitações e o controle público dos gastos do setor.
Detalhe administrativo. Foi a isto que se resumiu a Saúde Pública paulista e paulistana sob a gerência demotucana. No mais, o ignominioso tratamento dispensado ao setor e a forma displicente de tratar aquele que deveria ser seu público alvo faz com que Serra continue utilizando álcool gel para higienizar suas mãos toda vez que chega perto desses cidadãos – e óleo de peroba no rosto toda vez que vai à televisão dizer que a Saúde foi, é ou será sua prioridade. De concreto, não deve conseguir mais do que o cantores genéricos para suas propagandas…
(*) João Paulo Cechinel Souza é médico especialista em Clínica Médica, residente em Infectologia do Instituto de Infectologia Emílio Ribas (São Paulo) e colaborador da Carta Maior.