“Precisamos voltar a ser mais radicais”

Em live, Lula conversou sobre a greve de 78 na Scania, seus impactos na organização dos trabalhadores e na luta pela redemocratização do país

No dia em que a greve de 1978 na Scania completou 42 anos, em 12 de maio, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva organizou uma live sobre o movimento que revolucionou a história dos trabalhadores e a do Brasil.

Participaram os metalúrgicos que viveram o período, Augusto Portugal e Paulo Okamotto, o atual presidente do Sindicato, Wagner Santana, o Wagnão, e a diretora técnica do Dieese à época, Annez Andraus. Por problemas de conexão, o então diretor e trabalhador na Mercedes, Djalma Bom, não conseguiu participar.   

Foto: divulgação

Confira trechos da fala de Lula:

“O Sindicato já era avançado para aquela época. A inovação foi que decidimos que o Sindicato não era o prédio, eram os trabalhadores no local de trabalho.”

“Foi um momento de ebulição na categoria, a peãozada tinha orgulho de sair da fábrica e ir para o Sindicato. Faziam questão de passar, pegar o jornal, enfiar na barriga, na cueca, na meia, e levar para dentro das fábricas. Era um negócio maravilhoso a garra do pessoal. Tudo isso junto ao movimento estudantil, intelectuais, luta pelas Diretas-Já.”

“Eu odiava política, mas comecei a descobrir que não tinha saída se continuasse só na luta economicista, que só resolvia o problema do mês seguinte, mas não resolvia a vida. Foi 78 que me fez descobrir tudo isso, de pensar em criar um partido político, chegar ao poder e fazer transformações.”

“Essas histórias têm que ser contadas, ensinar a molecada sobre todas as conquistas que tivemos no século 20 e agora estamos perdendo tudo. O século 21 é o da destruição, inventaram outro jeito de explorar a gente, hoje não sabe quem é o dono da empresa, são fundos. Eles ficaram mais ricos e a gente mais pobre.”

“Não podemos continuar no mesmo discurso, temos que rediscutir o conceito de Estado. O neoliberalismo impôs a nós o tipo de governança e economia que queriam, os Estados foram privatizados e quando vem a crise do coronavírus percebem que somente o Estado pode resolver isso. Temos que ter orgulho de defender o Estado forte e democrático, com instituições voltadas para atender os interesses do trabalhador.” 

“Vamos ter que brigar muito para o Estado garantir saúde e educação para todos e que as pessoas não sejam informalizadas. Uber não é pequeno empresário, é trabalhador sem proteção nenhuma. Não adianta vender ilusão que o cara que entrega pizza de bicicleta é pequeno empreendedor, se cai e quebra a perna não tem nenhum direito.”

“Precisamos aprender a voltar a ser mais radicais. A verdade nua e crua é que um pouco de radicalização no século 21 vai fazer bem para a humanidade e para todos nós.”

Foto: divulgação

“A crise vai exigir muita criatividade”

O presidente do Sindicato, Wagner Santana, o Wagnão, tinha 16 anos na época, contou como viveu o momento e falou sobre os desafios atuais.

“Meu pai trabalhava na Ford, então as informações que tinha era o que ouvia dele conversando com minha mãe. Não existia internet, a mídia eram poucos canais de TV e rádio que não divulgavam as greves. Entrei na categoria em 84 e convivi com os companheiros que fizeram as greves. Hoje conseguimos perceber o quanto aquilo foi importante e mudou o Brasil. Como se fosse um jogo de futebol, foi o pontapé inicial no processo de reconstrução da democracia.”

“Agora vivemos um momento tão intenso quanto aquele momento por conta de um inimigo invisível, potencializado por um desgoverno que causa enormes perdas aos trabalhadores.”

“Hoje me cobram o motivo de o Sindicato já não fazer mais greve como antigamente. Primeiro, Volks e Mercedes antes tinham o que temos hoje de trabalhadores na categoria toda. E hoje não precisamos fazer a quantidade de greves justamente por conta dessas lutas, antes era preciso fazer greve de 30 dias só para o patrão receber a pauta. Hoje eles sabem que temos capacidade de paralisação.”

“Essa crise vai exigir muito do movimento sindical, muito da criatividade que tiveram e espero que estejamos à altura do que fizeram pelo país, essa é nossa responsabilidade.”

Foto: divulgação

“Arrombamos a porta da transição”

Augusto Portugal era inspetor de qualidade na Scania e atualmente é diretor da AMA-A ABC (Associação dos Metalúrgicos Anistiados e Anistiandos do ABC).

“Eu tinha 26 anos, trabalhava na Scania há dois. Era um momento de grande mobilização, movimento da carestia, 14 anos de ditadura militar, sangue nos olhos. Depois da campanha dos 34,1% e com o incentivo das greves parciais em março na Mercedes e Ford, começamos a preparar a greve na clandestinidade, os boletins iam embaixo do uniforme. Era uma sexta de manhã, entramos na fábrica e foi o silêncio lá dentro. Parou primeiro a ferramentaria.”

“Foi uma explosão de alegria da certeza de saber que tínhamos força e de fazer valer essa força. E começou o ciclo de greves por todo o Brasil, uma explosão de luta contra a ditadura, em um desejo de liberdade tão forte que nós, na nossa juventude, levamos para frente e, a partir daí, se fez a história.”

“Fomos de um extremo ao outro. Paramos sexta e segunda. Tinha uma proposta muito boa de aumento de 20% acima do reajuste do governo. Mas na DRT (Delegacia Regional do Trabalho) fomos traídos, a Anfavea impôs e a Scania roeu a corda do acordo. Mas a companheirada seguiu em frente com a solidariedade das greves nas outras fábricas. Meses depois, mais de 300 trabalhadores foram mandados embora, eu inclusive.”

“Arrombamos a porta da transição, se não houvesse a luta dos trabalhadores, estudantes, artistas, rurais, democratas, quem sabe a ‘transição lenta, gradual e segura’ teria feito a ditadura militar durar mais do que 21 anos.”

“Hoje todas as conquistas estão sendo atacadas por um governo assassino, que diz que a maior crise sanitária mundial é uma ‘gripezinha’. Mostra que é preciso avançar mais, clamar ‘fora, Bolsonaro’, defender a vida e a saúde das pessoas.”

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“A greve foi a panela de pressão que abriu”

Annez Andraus é socióloga e diretora técnica do Dieese à época e falou um pouco da conjuntura.

“A greve surgiu em um momento de arrocho salarial violento, normas muito rígidas e de muita efervescência. Os metalúrgicos começaram a ser uma categoria combativa.”

“O sindicalismo era muito calcado nas empresas tradicionais, tinha uma amarração muito forte, a ditadura tinha cerceado muito, a lei 4.330 proibia greve, repressão contra sindicatos.”

“Os sindicalistas associavam ser dirigente sindical com o lado burocrático, de estar com uma mesa à frente. Lula quebrou isso, o sindicalismo passou a se fazer na porta da fábrica. Fizemos um trabalho técnico do Dieese ao lado de uma diretoria pujante, jovem, com muita vontade de fazer e uma conjuntura favorável por conta do custo de vida.” 

“A greve foi o estopim de toda a oposição, a panela de pressão que abriu. Mas não foi só ela, foi o momento que a sociedade vivia, a economia, maturidade política da sociedade, duas greves em Osasco, muita repressão, muita coragem e muito trabalho de todos vocês.”

“Vimos que era possível”

Paulo Okamotto, metalúrgico na Brastemp à época e hoje diretor-presidente do Instituto Lula

“Tinha 22 anos e pouco tempo de Brastemp, que ficava muito perto do Sindicato. Tinha tido uma campanha forte no ano anterior, com muita mobilização pela reposição e aumento. Mas era época da ditadura, tinha lei antigreve.”

“No dia 12 de maio, ficamos apavorados com a notícia, o que vai acontecer agora? O que militares vão fazer? O que é fazer greve na ditadura? Será que vai começar a vir tanque, exército? A rádio peão foi chegando com as informações e foi motivo de alegria. Vimos que era possível fazer greve, o mundo não acabava. Foi uma sensação de poder, de ser revolucionário, de saber que quando a gente se une pode fazer.”

“Na prática, a greve formou geração de pessoas, trabalhadores, democratas. Foi o coroamento da mobilização e da organização, um momento extraordinário de aprendizado. Conteúdos como esse da luta dos trabalhadores no ABC estão no Memorial da Democracia, museu virtual produzido pelo Instituto Lula (memorialdademocracia.com.br). Acompanhem.”

“Estamos prontos para a luta que tiver que ser feita”

CSEs atuais na Scania analisaram as consequências no trabalho da representação hoje.

“A greve de 78 foi um grande marco para a categoria, com uma posição muito forte do Sindicato em uma época difícil, com negociações truculentas. De lá para cá, veio a conquista do respeito e do diálogo, de as empresas saberem que o Sindicato é combativo e, se precisar, fará o enfrentamento. Temos também a atuação do Sindicato Cidadão, de avançar nas discussões, ter propostas para a indústria, economia, empregos, tecnologia, pensar na cidade, no bairro, no futuro da classe trabalhadora do país”, Celso Ricardo de Moura.

“A realidade hoje é diferente, com desafios dessa pandemia, temos que ficar a dois metros de distância para falar com os trabalhadores, usamos muito mais a tecnologia para ter mais agilidade ao explicar os temas e ter menos fofocas. Antigamente a luta era mais na força do braço. Hoje é mais no diálogo, o trabalhador respeitar, vir junto com a representação, mostrar força para parar a qualquer momento e a empresa acaba respeitando. Continuamos a luta em um Sindicato forte”, Jerônimo Rodrigues Neto, o Chupeta.