Nota Técnica: Reconversão industrial no contexto da covid-19: diálogo e cooperação em defesa da vida e empregos
Leia a íntegra da nota tecnica elaborada pelo diretor executivo do Sindicato, Wellington Messias Damasceno, para a 13ª Carta de Conjuntura da USCS, do Observatório Conjuscs.
Wellington Messias Damasceno*
A presente nota técnica tem o intuito de debater o modelo de desenvolvimento industrial brasileiro a partir da reconversão industrial e da nacionalização de componentes e equipamentos médico hospitalares voltados para o combate à Covid19, mas também para setores estratégicos, como infraestrutura, energia e alimentação. O diagnóstico bem elaborado das áreas em que podemos ser competitivos pode reposicionar o Brasil na nova indústria global e, potencialmente, reduzir a ociosidade industrial no país. Diante da ausência do poder público em coordenar essas ações é fundamental que a sociedade civil organizada estabeleça uma mesa nacional em torno destes temas.
Diante da crise sanitária do coronavírus com consequências graves em quase todos os países, um aspecto que ficou escancarado foi a crescente dependência dos países diante de alguns poucos polos de produção médico hospitalar. A exemplo da China, que detém a maior fatia de produção global destes equipamentos, sendo responsável pela metade da produção global de máscaras e cerca de 20% dos respiradores.
Para salvar vidas, governos nacionais e regionais investiram pesadas somas em compras de insumos e equipamentos médicos, sobretudo respiradores – aparelho vital para as vítimas mais graves da pandemia.
Porém, com o forte aumento da demanda mundial, estes equipamentos imediatamente passaram a ser muito disputados, diante tanto da necessidade de prevenção e atendimento às vítimas do vírus, como da capacidade insuficiente de produção, ainda mais limitada pelas necessárias medidas de quarentena.
Com a produção insuficiente para atender a necessidade de todos os países, a disputa pela compra dos artigos produzidos e a urgência em equipar os sistemas de saúde frente à rápida propagação do vírus, governos e empresas passaram a empregar a reconversão industrial para produção local destes equipamentos, utilizando a ociosidade dos parques industriais, aumentando a agilidade na obtenção destes insumos e reduzindo a dependência externa.
A reconversão industrial pressupõe a rápida adaptação da capacidade de produção das indústrias que possuam certa flexibilidade e estejam operando abaixo da capacidade, para fabricação de outros produtos.
Este assunto não é novo aqui no Brasil. Há anos, sindicatos e associações pautam este debate como forma de frear o processo de desindustrialização, redirecionar plantas industriais com fabricação de produtos obsoletos para novos setores e garantir a manutenção dos postos de trabalho.
Com a necessidade emergencial de suprir a demanda de produção voltada à área da saúde, diversas iniciativas de reconversão aconteceram em vários países. Na China foram criadas linhas de crédito específicas para a reconversão produtiva de respiradores, insumos e peças de equipamentos médico-hospitalares; nos EUA, montadoras como GM, Tesla, Ford, além da Boeing, e outras produziram cerca de 30 mil ventiladores; no Japão houve subsídio financeiro de 30,6 milhões de ienes para a reconversão de linhas de produção; na França, verificou-se o desenvolvimento de um 60 consórcio entre empresas como Air Liquide, o grupo Peugeot/Citroën, Schneider e Valéo para a produção de 10 mil respiradores.
No Brasil, surgiram movimentos voltados à recuperação e manutenção de respiradores parados, produção de máscaras e aumento da capacidade produtiva de empresas brasileiras. O Senai Cimatec (BA) coordenou uma das ações de maior impacto que foi levantar junto ao poder público os respiradores fora de uso e encaminhá-los para manutenção em empresas que se voluntariaram, sobretudo nas montadoras. A Mercedes-Benz de São Bernardo do Campo auxiliou a fabricante de respiradores KTK a aumentar sua capacidade de produção, produzindo internamente componentes ou cedendo trabalhadores para auxiliar no incremento de produção. O Instituto Mauá de Tecnologia, em parceria com a Mercedes-Benz, desenvolveu um automatizador para respiradores manuais com a patente aberta para a empresa que se disponibilizar a produzir com o compromisso de doar os equipamentos. Diversas iniciativas também surgiram para a produção de máscaras, com a organização de cooperativas, empreendimentos de economia solidária e sindicatos, como o caso do Sindicato das Costureiras do ABC.
Ainda no campo das iniciativas, temos outras importantes frentes das Universidades e ICTs, como UFABC, USP, IPT entre outras, no campo do desenvolvimento de equipamentos de custo menor e soluções alternativas aos equipamentos padrões. Além dos projetos que buscam a nacionalização de itens importados ou a tropicalização de muitos componentes.
Essas iniciativas foram de extrema importância para reforçar a quantidade de equipamentos, sobretudo respiradores, na linha de frente da atuação dos profissionais da saúde, permitindo salvar muitas vidas. Porém, estas ações aconteceram de forma voluntária, seja por parte das empresas ou universidades, sendo que em raríssimos casos resultou na integração destas produções aos parques industriais que acolheram estas iniciativas. E na grande maioria, após a retomada da produção, deixaram de continuar o trabalho de apoio.
A grande dificuldade para que o país adote políticas de reconversão industrial está na falta de coordenação governamental. Não houve ação dos governos, seja federal sejam estaduais, em direcionar as empresas a atuarem para suprir demandas determinadas neste esforço de combate à pandemia. Mesmo as ações aqui citadas, como a manutenção de ventiladores, foram limitadas por falta de informações do poder público, que deixou passar a possibilidade de recuperação de muitos aparelhos. E quando se olha para o desenvolvimento de produtos, adaptação ou nacionalização de componentes, falta estratégia aos entes públicos para viabilizar recursos ou promover a aproximação entre o desenvolvimento tecnológico e a produção.
O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC tem inserido a reconversão em todas as pautas encaminhadas aos governos e associações empresariais58, defendendo um modelo urgente para suprir a demanda crescente nos serviços de saúde no país. Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil tem 14,8 mil leitos de UTIs adulto no Sistema Único de Saúde (SUS) e para a associação dos médicos de Unidades de Terapia Intensiva o país tem um déficit estimado em 20% de leitos de UTI no SUS.
A transformação de unidades fabris ociosas ou com produtos obsoletos, voltando-se para a produção de equipamentos e insumos na área médica, deveria ser parte central das ações de governo, e o Brasil poderia ainda exportar parte desta produção para países vizinhos. A produção de materiais para a área da saúde é estratégica e 58 Em carta encaminhada ao Governo do Estado de SP, ao Consórcio Intermunicipal Grande ABC, aos entes federais (Executivo, Câmara dos Deputados e Senado Federal) e direcionada às associações empresárias (Anfavea, Sindipeças, Abimaq e Abinee). 61 permitiria diminuir nossa carência histórica no atendimento à população, atuando num setor que movimenta bilhões de dólares, reduzindo ou revertendo o déficit comercial de US$ 8,3 bilhões registrados em 2019, segundo o próprio Ministério da Economia.
Iniciativas parlamentares surgiram na forma de projetos de lei, com o intuito de articular as ações voltadas a reconversão emergencial, viabilizar formas de custeio e organizar comitês de acompanhamento com a participação de universidades, trabalhadores, empresas e governo. O Sindicato encaminhou proposição de aditivo ao PL 1551/20, de autoria do Deputado Federal Helder Salomão (PT-ES), indicando o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e o Fundo de Garantia para Promoção da Competitividade (FGPC) como instrumentos que pudessem custear o desenvolvimento, inovação e reconversão de linhas de produção, visando prover os materiais necessários para enfrentar este período de crise pandêmica, além de reestruturar a indústria de equipamentos médico-hospitalares.
Assim como na área da saúde, é possível avançar na reconversão voltada a outros setores estratégicos, como infraestrutura, energia e alimentação. Levando em conta que são áreas fundamentais para a população brasileira, onde o país detém certas vantagens competitivas, poderíamos não apenas avançar em pesquisa e desenvolvimento, mas ligar também a industrialização local dos produtos relacionados ao avanço na segurança alimentar e energética, além do acesso tão necessário à universalização do saneamento básico e ao enfrentamento da mudança climática.
Na nova configuração econômica pós-pandemia, as cadeias globais de valor devem ser drasticamente alteradas, com os países industrializados ou emergentes incentivando a nacionalização de equipamentos e bens estratégicos, alterando o perfil de suas importações e direcionando esforços para novas tecnologias. Neste cenário, uma política nacional voltada à reconversão industrial, com diagnostico dos setores estratégicos em que podemos ser competitivos, pode reposicionar o Brasil na nova indústria global. O processo de reindustrialização do país requer ainda estímulo e valorização das atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, capacitação técnica dos trabalhadores e articulação dos setores produtivos visando à nacionalização de peças, sistemas, máquinas e equipamentos.
Esta nota aponta para a necessidade de construirmos um modelo de desenvolvimento industrial tendo como premissa a reconversão do parque industrial brasileiro, que já vinha apresentando problemas de ociosidade e defasagem tecnológicas. Para isso, é vital a coordenação governamental destes esforços, sempre atrelados à geração de empregos e ao desenvolvimento nacional. Na clara ausência de iniciativa e na evidente incapacidade do governo federal para liderar esse processo, se faz necessária a construção de uma mesa nacional com a presença do Congresso Nacional, do setor produtivo, das universidades e sindicatos de trabalhadores, para viabilizar esta plataforma de maneira conjunta. Avançar em medidas que possam salvar vidas nesse exato momento, mas que possuem também condição de alavancar a economia, especialmente pela retomada do dinamismo industrial, é uma bandeira essencial para qualquer entidade que se preocupa com o país e com nossa gente.
*Wellington Messias Damasceno, diretor de políticas industriais do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, trabalhador na Volkswagen – SBC, advogado e pós-graduado em Direito e Relações do Trabalho.
Abaixo acesse a íntegra da 13a Carta de Conjuntura da USCS, do Observatório Conjuscs.