Vala de Perus tem passado contado em livro. Mas presente ainda constrói novos capítulos

“Biografia” da vala clandestina, em São Paulo, esmiúça história dos crimes da ditadura no Brasil. Desafio é pôr o ponto final

Foto: Roberto Parizotti

A saga das ossadas de Perus, descobertas 30 anos atrás em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, agora está contada em livro, lançado na semana que passou. Ao mesmo tempo, vários dos envolvidos tentam garantir que a história ganhe um ponto final. No caso, a conclusão da análise do material encontrada naquele local, um desafio não só histórico, mas humano.

Foi o que aconteceu, por exemplo, nas últimas quinta e sexta-feiras (3 e 4), quando representantes da União, do Ministério Público e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entre outros, voltaram a se reunir. Um dos temas foi o aporte de recursos da Volkswagen (R$ 2,5 milhões). Resultado de um termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado entre a empresa e instâncias do MP, com parte de um acordo de reparação pela colaboração da Volks com órgãos da ditadura. As partes ainda não chegaram a um acordo. Aguarda-se manifestação da União, na próxima sexta (11), sobre proposta conciliatória.

Recursos para continuar

Há um mês, em 6 de novembro, o Núcleo de Ações Complexas do Gabinete da Conciliação do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) promoveu audiência para discutir proposta do Ministério Público Federal (MPF) sobre continuidade do trabalho de identificação das ossadas de Perus. Assim, a doação seria feita diretamente à Unifesp, mediante aditamento do acordo na ação civil pública do MPF que permitiu o andamento das análises – sob responsabilidade do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da própria universidade.

A expectativa é de que esses recursos estejam disponíveis em janeiro. Para o MPF, a doação “oferece uma solução abrangente para o principal óbice para a conclusão dos trabalhos de identificação das ossadas, qual seja, a limitação orçamentária”. Os recursos, espera-se, devem ser suficientes para essa conclusão, prevista para dezembro de 2022.

Por sinal, a questão dos recursos para o andamento dos trabalhos sempre foi um desafio, desde que um acordo envolvendo governo federal (governo Dilma) e prefeitura de São Paulo (gestão Haddad) permitiu a retomada das análises das ossadas, em 2014. O próprio Caaf é fruto desse entendimento. Esse é o tema do sexto capítulo do livro Vala de Perus: uma biografia (editora Alameda, 336 páginas), do jornalista e escritor Camilo Vannuchi, com apoio do Instituto Vladimir Herzog (IVH), que acaba de sair.

História atual

O autor lembra que se envolveu com o tema em 2016, quando ele fez parte da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo. Já a efeméride dos 30 anos da vala, neste 2020, foi um estopim para a ideia do livro. “O terceiro ponto que me motivou a escrever é o fato que essa história é muito presente, por causa desse negacionismo que a gente está vivendo”, diz Vannuchi. Além disso, o Estado brasileiro segue matando, como se detalha no oitavo e último capítulo.

Como ele explica, o livro traz um histórico de Perus, desde a inauguração do Cemitério Dom Bosco, em março de 1971. Era ainda um período de repressão intensa, sob o regime do AI-5. Governo Médici. Na prefeitura, o nomeado Paulo Maluf.

O cemitério foi construído em um local distante do próprio bairro, que por sua vez, naquela época, era quase remoto em relação ao centro paulistano. Ou seja, um local perfeito para depositar, silenciosamente, provas de crimes da ditadura: ossadas de presos políticos. Para lá foram também restos de vítimas de esquadrões da morte e até crianças, que sucumbiram a uma epidemia de meningite que o regime fez o possível para esconder.

Personagens

Alguns já sabiam que “naquele local tem cova”, para citar uma canção de Vital Farias. Mas foi preciso que alguns personagens entrassem em cena e se encontrassem para que a história fosse, literalmente, escavada. Estão todos no livro.

O jornalista Caco Barcellos, da TV Globo, que na época investigava a violência policial e topou com estranhos arquivos no Instituto Médico Legal. O faro de repórter o fez seguir adiante. (O livro traz, muito de passagem, um episódio de censura no pós-ditadura.)

O administrador do cemitério, Antônio Pires Eustáquio, o Toninho, que “cuidava do lugar como se fosse um caseiro” e foi fundamental na revelação da vala. Gilberto Molina, irmão do desaparecido político desaparecido Flávio Carvalho Molina. Suzana Lisboa, viúva do militante Luiz Eurico Tejera Lisbôa e coordenadora da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. A prefeita Luiza Erundina, que desde o início deu apoio às investigações.

Todos deram depoimento a Camilo, em um total de 38 entrevistas. Mas talvez os principais personagens de mais uma vilania da ditadura sejam mesmo os familiares das vítimas, que desde os anos 1970 saíram à busca dos restos mortais para fazer valer o direito de enterrá-los.

Ex-secretário nacional e municipal de Direitos Humanos, Rogério Sottili lembra que na retomada, em 2014, foi preciso “lidar com as desconfianças legítimas dos familiares”. Que ao longo dos anos viram as ossadas serem jogadas de um lado para o outro, entre Cemitério do Araçá, Unicamp, IML, sem o tratamento e o respeito devidos. “Para nós, era questão de honra fazer todo um processo de identificação, destrinchar. Era preciso contar essa história, que teve tanto percalço”, diz Sottili, hoje diretor executivo do IVH.

Ataques do governo

Os percalços, previsivelmente, se intensificaram em um governo formado por defensores do golpe de 1964. Em abril do ano passado, o presidente extinguiu o Grupo de Trabalho Perus (GTP), que coordenava as atividades. Em agosto, a procuradora da República Eugênia Gonzaga foi retirada da presidência da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – e substituída por um entusiasta da “revolução”. A ofensiva prosseguiu em dezembro, quando o governo tentou levar as ossadas para Brasília, a pretexto de economia de recursos.

Até hoje, cinco militantes enterrados clandestinamente em Perus tiveram ossadas identificadas, dois deles após a retomada dos trabalhos: Dimas Casemiro e Aluísio Palhano, ambos em 2018. Antes deles, Dênis Casemiro (1991) Frederico Eduardo Mayr (1992) e Flávio Carvalho Molina (2005). Todos eles contam histórias – e, com isso, vivem.

E a construção da memória é alicerçada pelos pesquisadores. A própria Alameda já havia publicado, em 2019, livro sobre outro ato sinistro da ditadura, do sequestro de bebês. Agora, Camilo Vannuchi escreve novo capítulo de um tempo aparentemente sem fim.

Da Rede Brasil Atual