A indústria 4.0 e os desafios para os trabalhadores brasileiros

Leia a íntegra da nota técnica elaborada pelo diretor executivo do Sindicato, Wellington Messias Damasceno, para a 16ª Carta de Conjuntura da USCS, do Observatório Conjuscs.

 Wellington Messias Damasceno*

Resumo Executivo: A presente nota técnica tem o intuito de apresentar uma análise, a partir de estudos e pesquisas, do impacto da crescente presença das novas tecnologias no cenário global e nacional e seus impactos para os trabalhadores. Também é objeto desta provocar o debate acerca da necessidade de diálogo envolvendo trabalhadores, acadêmicos, empresários e governos visando o desenvolvimento de políticas e estratégias para que o Brasil possa ocupar um local de destaque neste cenário, cada vez mais competitivo. E frisar a necessidade do trabalhador estar no centro do debate, como agente propositivo, buscando a valorização do trabalho decente e do desenvolvimento social do País.

Palavras-chave: Indústria 4.0; novas tecnologias; Manufatura Avançada; Digitalização.

Os termos “Indústria 4.0”, “manufatura avançada” e “digitalização” têm estado cada vez mais presentes em discussões no meio acadêmico, empresarial, governamental e também no mundo sindical. Cunhado na Alemanha em 2012, “Indústria 4.0” é uma expressão que traduz a política do estado alemão para um expressivo salto tecnológico, visando manter a dianteira global em projetos e na construção de máquinas e equipamentos inteligentes, esforço articulado que reúne governos, empresários, acadêmicos e trabalhadores.

Da mesma forma, os outros termos são “marcas” da estratégia que países como EUA, China, Japão, Índia e Coréia do Sul têm desenvolvido na busca por um posicionamento estratégico em campos da nova indústria como o armazenamento e tratamento de dados, microeletrônica, inteligência artificial e máquinas inteligentes entre outros.

Neste artigo, o termo utilizado para fazer referência a estes processos será “I.4.0”, que apesar de se referir a uma série de sistemas integrados, baseados em tecnologias já existentes que serão aperfeiçoadas ou desenvolvidas e geridas por inteligência artificial, poderá significar uma verdadeira revolução na organização do trabalho e nas relações sociais. É possível que as mudanças no cotidiano, baseadas nestes avanços tecnológicos, estejam muito à frente do que nos ambientes produtivos.

Ainda que o termo faça referência à indústria, este conjunto de novas tecnologias tem alterado o setor de serviços, comércio, hospitalar, agropecuário, de exploração mineral e possibilitando novos negócios, como uma infinidade de serviços oferecidos por plataformas digitais, acumulando uma quantidade nunca vista de dados. Não por acaso as grandes potências mundiais (países e corporações) investem somas vultuosas nestes campos e travam verdadeiras guerras pelo domínio destas tecnologias, a exemplo da disputa pela hegemonia na frequência 5G, envolvendo China e EUA.

Neste cenário de avanços tecnológicos em ritmo alucinante, causa extrema preocupação o futuro reservado aos trabalhadores. Estudos apontam para uma redução muito significativa do número de postos de trabalho. O relatório “O Futuro dos Empregos 2018”, do Fórum Econômico Mundial, aponta para a eliminação de 75 milhões de empregos devido à automação até 2022, enquanto a Consultoria McKinsey, após análise de 800 profissões em 46 países ao longo de 2017, estima que 800 milhões perderão seus empregos até 2030 e até um terço dos postos de trabalho atuais poderá ser automatizado em apenas 13 anos.

Outros estudos indicam o surgimento de novas vagas e profissões, porém não há indicativos que suprirão a perda de postos de trabalho existentes. Uma grande preocupação é em quais países estes novos empregos surgirão e quais as políticas de capacitação serão ofertadas aos trabalhadores. A disputa geopolítica também se dá no campo dos empregos e de onde estarão localizados os grandes centros globais de produção, já que o ganho de escala produtiva somado `a customização de produtos e serviços permitem um movimento de concentração de empresas, centros tecnológicos e empregos.

Diante do exposto, os trabalhadores brasileiros têm grandes obstáculosa enfrentar. A automação e implantação de novas tecnologias tendem a eliminar de maneira mais célere uma serie de ocupações trabalhos de média e baixa complexidade, que são os mais numerosos no país. Segundo estudo formulado pela Universidade de Brasília, 54% dos empregos formais no Brasil estão ameaçados por máquinas.

Além disso, o país vem sofrendo uma desindustrialização acentuada, com fechamento de fábricas e efeitos diretos na redução do comércio, prestação de serviços e empregos. A participação da indústria de transformação no PIB brasileiro, que havia sido de 22% em 1985 e 18% em 2004, chegou a seu pior nível em 2019, com 11%8 e tendência de queda. O Brasil, que em 2017 era o sétimo país em participação no valor adicionado mundial da indústria de transformação, com 1,30%, caiu para a décima sexta posição em 2019, com 1,19%9.

Ainda que alguns especialistas atribuam a queda da participação da indústria de transformação no PIB ao crescimento da participação de setores como comércio e serviços, é fato preocupante a redução da atividade industrial e que a maior parte das atividades ligadas a estes setores são de baixo valor agregado, com geração de empregos com baixa remuneração e pouco investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação.

Sabendo que a disputa geopolítica pelo protagonismo no campo da inovação e no desenvolvimento e domínio das novas tecnologias passam por investimentos e políticas estratégicas, o ambiente brasileiro é preocupante. Os investimentos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação vem caindo ano após ano, saindo de R$ 7,9 Bilhões em 2013 para R$ 3,0 bilhões em 201910. O país possui 700 pesquisadores por milhão de habitantes enquanto nos EUA são 3900 pesquisadores por milhão de habitantes, na Coréia do Sul são 6400 por milhão de habitantes e Israel tem 8300 pesquisadores por milhão de habitantes11. Entre os principais países em investimentos com pesquisa e desenvolvimento em 2019, o Brasil aplicou US$ 39,6 bilhões, enquanto a Coréia do Sul aplicou US$ 93,5 bilhões, Índia US$ 94,1 bilhões, Alemanha US$ 123,2 bilhões, Japão US$ 193,2 bilhões, China US$ 519,2 e EUA US$ 581 bilhões12.

Esta realidade altamente competitiva e tecnológica tem potencial predatório para os brasileiros. Reformas que visam baratear o custo de produção e maximizar lucros tem precarizado e empobrecido os trabalhadores. A organização social do trabalho tradicional tem sido desmontada, seja através de tais reformas e seus modelos precarizados, seja pelos novos modelos que surgem com as novas tecnologias, sem regulamentação e proteção social aos trabalhadores. Em ambos os casos, crescem os números de trabalhadores pulverizados e alheios ao pertencimento de classe ao lado da falta de políticas públicas estratégicas que impeçam o desmonte da indústria nacional e possibilitem a capacitação dos trabalhadores para a nova indústria. Segundo previsão da Softex – Associação para promoção da excelência do software brasileiro, somente em desenvolvimento de software e prestação de serviços de tecnologia da informação, até 2022 haverá um déficit acumulado de 408 mil profissionais. Esse cenário é facilmente encontrado em outras áreas cujas profissões estão ligadas a novos produtos, equipamentos, sistemas e materiais.

Na falta de políticas de desenvolvimento econômico, com geração de riqueza, empregos de qualidade e um plano nacional de capacitação profissional, os trabalhadores brasileiros têm buscado no trabalho informal por meio de aplicativos sua sobrevivência. Segundo o Instituto Locomotiva, 17 milhões de brasileiros utilizam aplicativos para obter alguma renda, sendo que 3,8 milhões declaram os aplicativos como principal fonte de renda (Pnad – IBGE). De acordo com a associação brasileira do setor de bicicletas – Aliança Bike, em pesquisa realizada com ciclistas de aplicativos, 57% trabalham todos os dias, 75% trabalham até 12 horas por dia, para ganharem R$ 936,00 mensais em média, abaixo do salário mínimo nacional e 59% declararam que estavam desempregados. Configura-se como o novo proletariado, que depende de smartphones para desempenhar suas atividades, geralmente de alta intensidade, pouco controle, baixa remuneração e que, apesar da presente subordinação, não há quem se responsabilize por eles.

Toda essa discussão coloca diversos desafios para a sociedade brasileira, mas principalmente aos trabalhadores e movimento sindical. Compreender as mudanças em curso e estabelecer uma mesa nacional de diálogo entre trabalhadores, academia, empresários e governos é fundamental para a construção de políticas de fomento à inovação, ao fortalecimento das cadeias de valor e capacitação profissional. Neste aspecto vale destacar a necessidade de capacitação dos agentes negociadores em relação aos temas e suas contribuições.

É estratégico pensar a reindustrialização do país, com políticas de investimentos em P&D&I e de reconversão industrial, com vistas a promover os saltos tecnológicos necessários. A indústria promove o desenvolvimento tecnológico, científico e educacional de um país. E no caso brasileiro, há um potencial de articulação com setores como alimentação, infraestrutura, energia e defesa que somam nos esforços do desenvolvimento social e econômico do país e de tecnologias inovativas e com DNA nacional.

Torna-se imprescindível combinar estes esforços com um pacto de transição justa. Trata-se de estabelecer uma política de Estado em que os investimentos e reestruturações tenham seus impactos e prazos negociados entre sindicatos e empresas, de forma a mitigar a drástica perda de postos de trabalho, combinando os avanços tecnológicos com previsibilidade de novos empregos. Além da necessidade de uma política de capacitação profissional visando habilidades confluentes com as tecnologias e flexíveis para que os trabalhadores possam transitar no processo.

E ainda, principalmente ao movimento sindical, representar os trabalhadores alocados nas novas relações de trabalho, como profissionais em startups, MEIs e aplicativos, de forma a garantir direitos sociais a estes trabalhadores e que essas novas modalidades contribuam para um projeto de desenvolvimento nacional, incluindo maior sinergia com o meio acadêmico.

Os desafios são enormes, mas para um país com o tamanho e o potencial que o Brasil possui, necessitam ser encarados e superados. O que só será possível com o diálogo envolvendo a sociedade, com suas representações governamentais, de trabalhadores, da academia e do empresariado, comprometidas em resgatar o país como um jogador importante na geopolítica internacional, capaz de gerar conhecimento, riqueza para sua população e contribuir para o desenvolvimento de outros países. E que tenha o trabalho decente como centro do debate do avanço tecnológico. Os trabalhadores devem ser protagonistas em articular e cobrar esse diálogo e ações concretas sobre o futuro do trabalho e a Indústria 4.0.

*Wellington Messias Damasceno, diretor de políticas industriais do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, trabalhador na Volkswagen – SBC, advogado e pós-graduado em Direito e Relações do Trabalho.

Abaixo acesse a íntegra da 16a Carta de Conjuntura da USCS, do Observatório Conjuscs.