Brasil vive crise energética por gestão inadequada, afirma especialista

Ex diretor-presidente da Agência Nacional de Águas alerta ainda para aumento de tarifas e crises mais frequentes com a privatização da Eletrobras

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Para entender melhor a crise energética no Brasil, a Tribuna conversou com o estatístico pela Unicamp, Vicente Andreu, que foi diretor-presidente da ANA (Agência Nacional de Águas) de 2010 a janeiro de 2018. O especialista alerta para gestão inadequada das hidrelétricas pelo governo federal e para a intensificação da crise e do aumento das tarifas com a privatização da Eletrobras.

Tribuna Metalúrgica – Por que estamos vivendo mais essa crise no setor elétrico?

Vicente Andreu – A primeira coisa é não caracterizar essa crise como uma crise hídrica, é uma crise de energia decorrente de falta de chuva, mas não apenas. Ela é decorrente principalmente de uma operação inadequada do setor elétrico brasileiro na bacia do rio Paraná. Quando se fala em crise hídrica, parece que o problema é de São Pedro e não é, esse problema é de uma operação do sistema hidrelétrico de maneira inadequada. Manaus está batendo recorde de 101 anos de cheia, a bacia do São Francisco está há dois anos com volumes de reservatórios altos.

TM – O que exatamente seria essa operação inadequada?

Vicente Andreu – Se liberou mais água do que o recomendável para esse processo, ou seja, se apostou, quando se olha os gráficos da bacia do Paraná, em chuvas que viriam e que não vieram, se usou além do que seria razoável durante esse período. Deveria ter havido prudência e guardado mais água nos reservatórios da bacia do rio Paraná.

TM – Quem são os responsáveis por isso?

Vicente Andreu – Principalmente a ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) que com certeza seguiu uma lógica do governo federal através da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) e do Ministério de Minas e Energia.

TM – O governo nega, mas há risco de um novo racionamento de energia?

Vicente Andreu – O documento que a ONS encaminhou à ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) caracterizando a situação atual é dramático. Como eles operaram mal no período chuvoso, para não ter risco maior, porque mesmo assim o risco é grande, vão ter que fazer operações, por exemplo, como entrar na bacia do São Francisco que está preservada. Podem “transbordar” essa crise para outras bacias e para outros usuários.

TM – E quais os riscos dessas medidas?

Vicente Andreu – Eles vão tocar a energia da bacia do São Francisco que foi preservada, inclusive a partir de regras que tivemos na ANA, restringindo a redução para não acontecer o que aconteceu de 2012 até 2017. Vão quebrar as regras, podendo levar a crise hídrica inclusive para a bacia do São Francisco. Também vão parar a hidrovia Tietê-Paraná, que tinha sido assumido que não aconteceria novamente, vão reduzir o nível de Itaipu, o que exige um acordo com o Paraguai.

Pelo documento, essas medidas todas, ainda levam os reservatórios não a zero, mas a níveis da ordem de 7% na média geral para novembro, o que é de um risco monstruoso, porque se as chuvas de 2021 para 2022 atrasarem ou forem insuficientes, o ano de 2022 será dramático.

TM – Então estamos arriscados a viver crises ainda piores que as anteriores?

Vicente Andreu – A penalidade vai ser um aumento de tarifa para quem não tem responsabilidade sobre a operação inadequada que é a população do Brasil inteiro. A bacia do Paraná responde sozinha por 30% a 40% de toda a geração elétrica brasileira, então eles deveriam ter operado melhor. Mesmo que as térmicas entrem em potência máxima, o risco de perder o controle das bacias por falta de água é enorme. Mas além da crise energética, isso remete também à questão das mudanças climáticas.

TM – Então era possível prever?

Vicente Andreu – Claro, por isso deveria operar com prudência e não operaram. As cheias acontecem num período relativamente curto de tempo, a seca não, ela é um evento prolongado. Então essa seca na bacia do Paraná, mesmo sendo de grandes dimensões, ela se arrasta há dois anos.

TM – E o que deveria ter sido feito?

Vicente Andreu – Reduzir as descargas das hidrelétricas e gerado nas fontes alternativas que o Brasil tem, uma parte delas é térmica, mas também a utilização máxima de outras fontes de energia.

TM – O governo tenta colocar a culpa no clima, está certo?

Vicente Andreu – Temos duas mensagens por parte do governo, uma de que essa é a pior crise hídrica que já existiu, para tentar retirar a responsabilidade que ele tem sobre uma operação inadequada. A segunda mensagem, que é incoerente com a primeira, é que não há risco de apagão.

TM – Então podemos ter um blecaute?

Vicente Andreu – O documento da ONS deixa isso claro, é muito preocupante. Quem administra o setor elétrico apostou numa condição climática absolutamente incerta e se deu mal. Agora vai ficar dependente do próximo período chuvoso nessa bacia que é de novembro até março do ano que vem e como ela é muito representativa para a energia no Brasil, pode gerar uma crise de energia.

TM – Como a privatização da Eletrobras impacta no setor elétrico?

Vicente Andreu – Ninguém tem dúvida de que a tarifa vai ter uma elevação mais alta. A Eletrobras tem uma importância do ponto de vista do setor hidrelétrico brasileiro, porque responde por cerca de 50% das linhas de transmissão e quase 40% das hidrelétricas brasileiras.

Imagine operar as hidrelétricas não num regime de ser um colchão para promover a segurança hídrica e energética, mas no sentido de maximizar o lucro do investidor privado que compra a Eletrobras. Ela vai mudar o perfil da sua operação, vai deixar de ser um colchão para acomodar as diferenças energéticas nas regiões do Brasil, para ser uma empresa que vai gerar lucro. Além da explosão de tarifas que já foi estimada em cerca de 16% de imediato no Brasil, ainda vai produzir insegurança energética por conta dos interesses privados e as crises tendem a ser mais frequentes.