“A Covid não é democrática, por isso o grande ‘dane-se’ do governo”
Em entrevista exclusiva à Tribuna Metalúrgica, Arthur Chioro, médico sanitarista, ex-ministro da Saúde do governo Dilma Rousseff (PT) entre 2014 e 2015, secretário de saúde em São Bernardo no governo Luiz Marinho e professor na Unifesp, afirmou que o Ministério da Saúde é sujeito ausente, que a falta de informações prejudica o combate à pandemia.
Chioro detalhou o que deveria estar sendo feito para evitar mortes e contágios e disse que se não tivéssemos o SUS, estaríamos passando por um genocídio antecipado. Segundo ele, o Brasil pode ter, aproximadamente, 10 milhões de infectados, se somados os casos não testados.
Tribuna Metalúrgica – Para começar precisamos falar da manobra que o governo Bolsonaro fez para não divulgar os números totais de mortes e casos confirmados da Covid-19. O que o governo está tentando fazer é manipular as informações sobre o coronavírus? Por que?
Arthur Chioro – É a institucionalização do “E daí?”. É a expressão da irresponsabilidade. Bolsonaro conseguiu encontrar um agente público descomprometido e que se dispõe a cumprir as ordens mais absurdas, entre elas o erro mais primário na condução da epidemia, coisa que qualquer sanitarista aprende na primeira aula do curso de saúde pública, que é jamais conduzir o enfrentamento da pandemia gerando desconfiança ou descrédito nas informações.
TM – A partir de agora fica mais difícil confiar nos dados divulgados pelo governo?
Chioro – Completamente. Porque a base, a vigilância epidemiológica, é definida como informação para ação. Sem informação, a ação fica profundamente prejudicada. Fica prejudicado o raciocínio clínico, epidemiológico que os profissionais de saúde na hora de atender os pacientes desenvolverão, a organização das secretarias de saúde no combate à pandemia, a população de maneira geral que se coloca em dúvida do que de fato está acontecendo. Prejudica demais a tomada de decisão dos gestores.
Agora, como se trata de um governo terraplanista, epidemiológico e sanitário, eles não dão nenhuma importância. E trazem, no momento mais crítico da pandemia, uma nova crise absolutamente desnecessária.
Estamos nos aproximando de 80 dias do surgimento da Covid no Brasil, na maior parte dos países, com 50 dias a epidemia foi controlada e nós continuamos em um processo explosivo, neste momento, com mais de 37 mil óbitos e 700 mil casos que não expressam a real ocorrência. Até porque, a gente só testa casos graves e óbitos, então os casos leves e assintomáticos, que correspondem a mais 80% do total, sequer são conhecidos. O que nos permite afirmar que estamos entre 7 a 10 milhões de infectados, é 10 a 12 vezes mais do que os confirmados.
TM – Em meio a essa pandemia, após as divergências de Bolsonaro com dois ministros da Saúde, o Brasil segue com um general na pasta que não é da área. O que isso representa aqui e como fica a imagem do país no exterior?
Chioro – Não existe comando no Ministério da Saúde, ele é o sujeito ausente dessa história e quando entra é para atrapalhar. Além dos exemplos que já citei também tem a cloroquina, tem incapacidade de fazer compras de testes e de leitos de UTI.
E do ponto vista internacional, o Brasil que sempre foi muito respeitado entre os países fora do G7, sempre foi o país mais importante, hoje virou uma pária internacional, estamos literalmente descartados. O Chile e a Costa Rica assumiram a liderança no nosso lugar nas negociações que envolvem a produção de vacina, a busca de novos medicamentos e a própria interlocução com os organismos internacionais. É um retrocesso sem precedentes. Mas o Bolsonaro é muito coerente, ele disse que ia destruir tudo.
TM – Para onde o país caminha, já que nem o pico da doença nós atingimos?
Chioro – Caminha para se transformar no novo epicentro, já somos hoje o novo epicentro. Representamos 2,7% da população mundial e, na semana passada, já representávamos 20% dos casos da Covid no mundo.
Caminhamos para tragédia e genocídio. Pagam com suas vidas os mais pobres, pretos, idosos, as pessoas com comorbidades. A Covid não é democrática, por isso o grande “dane-se” do governo. Na lógica do Guedes e companhia eles já devem estar fazendo as contas para saber qual o tamanho do ajuste no déficit da Previdência.
TM – O que deveria estar fazendo um ministro da Saúde neste momento?
Chioro – Imediatamente restaurar a transparência na informação. A segunda, testagem em massa, tanto dos casos leves para entender o comportamento da doença. Depois, colocaria a rede básica de volta em campo, o Programa Mais Médicos, as Unidades Básicas de Saúde para cuidar dos casos leves,assintomáticos e das pessoas que têm problemas de saúde e estão completamente abandonadas.
Criaria centros de isolamento nas periferias, usando escolas e ginásios, para que pessoas que vivem em situações muito precárias pudessem cumprir o isolamento, caso identificado que estão com Covid, até completar 14 dias, para assim interromper a cadeia de transmissão, mesmo que seja leve ou assintomático, mas como todo conforto.
Faria fila única de UTI, se chegar perto de 80% de ocupação dos leitos do SUS, convoca leitos privados. E muita informação e estratégia de comunicação, principalmente para os jovens que mais se infectam e transmitem. Também com idosos e periferia, chamaria sindicatos para parceria com colônias de férias para fazer um centro de isolamento.
TM – Como avalia a importância do SUS neste momento? Acredita que a população em geral dará mais valor ao Sistema Único de Saúde?
Chioro – Apesar de o SUS estar sendo destruído desde o golpe, ainda bem que nós temos o SUS, se não, aí sim seria genocídio antecipado. E espero que os segmentos mais combativos do movimento sindical percebam a importância de ter um sistema universal para todos, e não um SUS pobre para pobres. Os melhores resultados no combate à Covid foram nos países com sistemas universais em que todos usam o sistema público, como Portugal, Alemanha e França. Espero que a gente consiga apresentar o valor social do SUS para defendê-lo. Espero que a gente consiga sair dessa com o SUS fortalecido.
TM – A confusão de medidas não é só no âmbito federal, no Estado e na região do ABC há uma notável falta de planejamento. A questão do rodízio mais restritivo, a antecipação de feriados sem combinar e agora essa reabertura parcial. Como avalia essas medidas?
Chioro – Vejo com muita preocupação, não há nenhuma base que sustente essa flexibilização. Em São Bernardo, em uma semana, o número de óbitos cresceu 13,4% e o número de casos cresceu 35,4%. Com que base vai se propor flexibilizar isolamento quando sabe que é a medida mais efetiva para o controle? Nós nem testamos e estamos flexibilizando em um momento de progressão. É absolutamente irresponsável. Vejo como uma atitude de governo e prefeitos descomprometidos com a vida, submissos a empresariados e colocando o processo de eleição municipal acima do interesse público.
TM – Tem alguma explicação sobre o motivo da taxa de letalidade no ABC ser tão maior do que a do Estado e do país?
Chioro – Não tem. É uma estranheza. O fato de a taxa de letalidade do Brasil ser mais alta que a dos outros países se explica porque a gente não testa casos leves e assintomáticos. Como a taxa de letalidade é calculada dividindo o total de óbitos pelo total de doentes, a nossa taxa de letalidade fica artificialmente aumentada. Agora não justifica porque a do ABC ser tão mais alta. Provável, o que se pode supor é que expressa uma qualidade da assistência pior do que a média nacional. Mas como a gente sabe que a medicina no ABC não é pior que a média nacional, é muito estranho esse dado. Precisaria ser desenvolvido um estudo, talvez a subnotificação de casos esteja maior que a média nacional.
TM – Para finalizar, você atuou bastante no Consórcio Intermunicipal Grande ABC, que teve uma queda de atuação nos últimos anos e agora neste momento se faz ainda mais necessário. Qual a importância dessa atuação conjunta, não só em momentos de crise?
Chioro – O Consórcio expressa a liderança dos prefeitos. Se o prefeito não dá peso ao processo de regionalização, se não compreende a importância de dar soluções regionais, os secretários e as equipes técnicas não vão valorizar aquele espaço.
Em segundo lugar, os prefeitos, além de não liderarem, não têm tido capacidade técnica de pensar projetos regionais, como nós fizemos sob a liderança do Marinho (Luiz). Tínhamos um time de gestores na região que se comprometia com a busca de soluções regionais, ainda mais com ausência de governo estadual. Se desperdiça um grande espaço.
A região não ter feito estudo de soroprevalência da Covid chega a ser lamentável. Com o estudo, com muito mais informação, segurança e transparência, saberíamos como está exatamente o comportamento da enfermidade, tipo de medidas e problemas. Na Baixada está sendo feito um estudo, mas no ABC a gente não vê nada, voltou a ser literalmente cada um por si. A chance de dar certo em uma região de fato é mínima. A não ser que alguém ache que vai encontrar soluções sozinhos para os problemas da sua cidade, ledo engano.