“A destruição desses biomas é a destruição de toda a forma de vida no campo e nas cidades”

O governo Bolsonaro segue fazendo vista grossa para as queimadas no Pantanal e na Amazônia enquanto o agronegócio vai passando a boiada.

Foto: divulgação

Os primeiros dias de setembro deste ano já tiveram mais queimadas na Amazônia do que em todo o mês de setembro de 2019. Até o último dia 15, 20.485 focos de calor foram registrados no bioma pelo programa Queimadas, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). O Pantanal também ganhou as manchetes com fotos assustadoras de animais mortos pelo fogo, já são mais de 2,3 milhões de hectares atingidos por queimadas, segundo o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais.

O secretário-geral do Sindicato, Moisés Selerges, destacou a importância da preservação ambiental para toda a humanidade.

“Muitas vezes a gente vê as queimadas no Amazonas e no Pantanal e pode achar que não tem a ver com a vida aqui, já que está cercado de prédios. Mas tem muito a ver, influencia no clima de maneira forte, na água, nos alimentos, na saúde, no bem estar e no futuro da humanidade”, afirmou.

“As riquezas da natureza têm que ser preservadas. Nosso papel hoje é lutar para que nossos filhos e netos possam ter um mundo melhor amanhã, não podemos nos omitir”, reforçou.

Para falar sobre as motivações desses crimes, seus reflexos nas populações do campo e da cidade, da responsabilidade do governo e da agroecologia, a Tribuna conversou com Luiz Zarref, da Coordenação Nacional do MST.

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Tribuna Metalúrgica – Para começar é importante frisar os motivos dessas queimadas. Elas são motivadas pela sanha do agronegócio para pastagem de gado, é isso mesmo? Por que elas têm aumentado de forma alarmante?

Luiz Zarref – Entender os motivos das queimadas é fundamental. A queimada faz parte de uma lógica perversa de ampliação dos latifúndios.

A primeira ação é o desmatamento, onde se retiram as madeiras nobres, criando grandes clareiras e fragilizando a floresta e o cerrado. Essa ação sempre vem casada com a violência contra indígenas, povos e comunidades tradicionais e assentados.

Quando chega o período da seca, os agentes do agronegócio operam as queimadas, que, encontrando os ecossistemas já desequilibrados, avançam de forma rápida e descontrolada.

Passa a queimada, vem um novo ciclo de violência contra os povos do campo e, junto, o semeio do pasto e o gado. Consolidado esse ciclo, em 1 a 3 anos, entra a tentativa de regularizar essas terras, ou seja, a grilagem. E, assim, alguns seguem com gado, outros passam para a soja.

Essas são a engrenagem de um processo de morte social e ecológico dos territórios na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado. Não é, portanto, só gado. Estamos falando, concretamente, da velha política de grilagem de terras.

TM – Em contraponto ao agronegócio que lida com a natureza de forma predatória, temos a agroecologia exercida pelo MST que preserva os recursos naturais. Como ampliar a agroecologia no Brasil e crescer de forma sustentável?

Luiz Zarref – A produção de alimentos saudáveis, com base na agroecologia e na cooperação, é a única possibilidade de inverter a lógica de desenvolvimento mortal do campo brasileiro.

Reinserir a reforma agrária na agenda de um novo projeto para o Brasil passa por compreender que é com ela que poderemos avançar na agroecologia. O agronegócio pode até trabalhar com algum nicho de mercado orgânico, principalmente para exportação, mas sua lógica de produção sempre será prioritariamente destrutiva.

Então, a primeira coisa é retomar a reforma agrária e defender os territórios tradicionais.

A segunda, é entender que o Estado deve ter um papel decisivo, seja com políticas de fomentos e créditos adequados, seja pela pesquisa (reorientando universidades e a EMBRAPA), seja por uma politica de assistência técnica. E, ainda, uma política de compra institucional (escolas, hospitais, presídios) que favoreça esses produtos.

A terceira base para a ampliação da agroecologia é a defesa da soberania alimentar. O direito à alimentação saudável deve ser reconquistado pelo povo trabalhador da cidade. A comida hoje das massas trabalhadoras é mercadoria, não alimento. Isso gera obesidade com desnutrição, gera deficiências imunológicas e intoxicação com agrotóxicos. Então somente com uma grande luta popular pela alimentação saudável, que articule campo e cidade, conseguiremos avançar na agroecologia.

TM – O governo Bolsonaro insiste em negar as queimadas. Onde podemos chegar com essa política de destruição do meio ambiente?

Luiz Zarref – O governo tem papel central nessa intensificação da depredação ambiental. Se o governo Bolsonaro continua, o cenário é muito grave. Como já disse, o primeiro impacto grave é sobre os povos do campo, das águas e das florestas, que são os guardiões centenários desses ecossistemas. Então é um fogo que se abastece de sangue e sofrimento, em primeiro lugar.

Há os impactos ecológicos. Todos têm ouvido falar muito das mudanças climáticas, e as queimadas aceleram essas mudanças, pois emitem grandes quantidades de gases efeito estufa.

Mas não é só essa consequência. Há também o impacto sobre as águas.

Por um lado, a destruição desses ecossistemas impede o ciclo das águas, secando as nascentes, impactando os territórios localmente. Mas isso também impacta todo o ciclo das chuvas no Brasil e mesmo em parte da América do Sul. Então, o Cerrado e o Pantanal acumulam água e a distribui para todo o país, por isso é conhecido como berço das águas.

A Amazônia lança imensos volumes de água na atmosfera, criando verdadeiros rios voadores. Portanto, a destruição desses biomas é a destruição de toda a forma de vida no campo e nas cidades em todo o país.

Então é um cenário de clima mais aquecido, com menos chuvas e menos água para abastecer as cidades.

Ainda temos o impacto sobre a biodiversidade. A ciência ainda não conhece toda a importância da biodiversidade que temos como bem comum. O campesinato tem um conhecimento empírico de milhares de espécies vegetais e animais nativas.

Tudo isso é destruído pelas queimadas e a implantação das monoculturas. É a destruição do nosso futuro como ser humanos, como ciência e mesmo da natureza como a conhecemos.

E ainda temos o risco de novos patógenos. Microorganismos que estavam em equilíbrio no meio ambiente são lançados nesses ambientes destruídos e que passam a ter grandes planteis de gado, porco e aves. Isso se transforma em uma biofábrica da morte, potencialmente produzindo novas doenças.

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TM- O que o governo deveria estar fazendo para coibir as queimadas?

Luiz Zarref – Entendemos a questão ambiental também como questão agrária. Não existe cerrado, pantanal ou Amazônia sem seus povos. Então a primeira medida é o reconhecimento dos territórios tradicionais, a demarcação dos territórios indígenas, e a realização da reforma agrária nas áreas de pastagem ou monocultura, porque a reforma agrária recupera o meio ambiente.

Além da terra, é importante uma série de políticas públicas de fortalecimento desses povos, com apoio à produção e comercialização dos alimentos da sociobiodiversidade, da produção agroecológica, por políticas de educação do campo, saúde popular, moradia.

Em outro lado, o Estado deve fortalecer os órgãos de gestão ambiental, com foco justamente no agronegócio e na mineração. Investir em inteligência (satélites, pesquisas) e em controle, com equipes qualificadas que, junto com as comunidades tradicionais, impeçam o avanço dessas forças destrutivas.

E, por último, mudar toda a lógica de apoio ao agronegócio. O Estado brasileiro entrega tudo ao agronegócio: dinheiro, pesquisa, infraestrutura. Tem que mudar essa lógica. O crime está sendo recompensado.

TM – O MST lançou o programa “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”, com objetivo de plantar 100 milhões de árvores em 10 anos, a partir dos Sistemas Agroflorestais. O que isso representa? Quais outras ações do Movimento neste sentido podemos destacar?

Luiz Zarref – Historicamente o MST sempre trabalhou a consciência ambiental, porque entendemos que a terra é um bem comum que, quando conquistada pela reforma agrária, deve ser cuidado. Em vários estados os assentamentos têm mais área conservada do que os parques estaduais, porque todo assentamento deve ter Reserva Legal (80% na Amazônia, 20% nos demais biomas).

Mas entendemos que isso não é suficiente frente a essa nova onda de destruição ambiental. Estamos lutando pela vida no presente e no futuro. E uma das “armas” são as árvores. Contra a morte, o desmatamento, plantemos árvores. Porque elas são importantes ecologicamente, mas também porque elas são um bem público. Quem é dono de uma árvore? Ela faz bem para todos.

Então queremos fazer um grande movimento de ampliar as agroflorestas, os quintais produtivos, entendendo que árvores também é parte do sistema de produção de alimentos, de práticas medicinais, de espiritualidade.

Mas queremos também contribuir para que isso se transforme num grande movimento da sociedade. As praças, os canteiros de avenidas, os parques, as beiras de rios… esses espaços devem ser ocupados pelas árvores – embelezando, produzindo alimento, melhorando o clima.

Então cada força social, de bairro, sindical, popular, escolas, universidades… queremos dialogar com todos para ir construindo, ao longo desses anos, esse belo enfrentamento ao modelo de morte.