Ao completar sete anos, chacina de Unaí segue sem julgamento
Eles não tiveram chance. Emboscados em uma rodovia vicinal por volta das 8 horas da manhã, os três auditores fiscais do trabalho e o motorista que dirigia a Ford Ranger foram alvejados na cabeça com tiros de revólver calibre 38 e uma pistola 380, em uma ação rápida e classificada como “profissional”. Ao se completarem sete anos do assassinato nesta sexta-feira (28), os envolvidos na chamada chacina de Unaí, noroeste de Minas Gerais, ainda não foram a julgamento. Em função da tragédia, a data tornou-se o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
As vítimas eram servidores do Ministério do Trabalho e Emprego. Os fiscais Eratóstenes de Almeida Gonçalves, o Tote, de 42 anos, João Batista Soares, 50, e Nelson José da Silva, 52, vistoriavam as condições de trabalho e moradia de colhedores de feijão. Ailton Pereira de Oliveira, 52, dirigia o veículo. Ele ainda conseguiu conduzir o carro por alguns quilômetros e ser socorrido, morrendo horas depois.
“O ambiente lá já era tenso”, lembra João Coelho Frazão de Barros, à época presidente da Associação dos Auditores Fiscais do Trabalho de Minas Gerais (AAFT-MG), hoje vice-presidente da entidade. “Subestimamos o perigo. Achávamos que era algo impossível de acontecer.”
Frazão observa que um dos fiscais (Nelson) chegou a trabalhar acompanhado de um segurança durante algum tempo. Segundo relatos, Nelson já tivera desentendimentos com o proprietário rural Antério Mânica, um dos acusados – que naquele ano foi eleito prefeito, sendo reeleito em 2008. O cargo exercido lhe confere o direito de ser julgado em foro especial. Em 2004, ele chegou a ficar preso, mas obteve um habeas corpus.
Em relatório de 2003, Nelson informou ter sido ameaçado por Norberto Mânica, irmão de Antério. Segundo denúncia que consta em relatório de 2006 da Procuradoria Regional da República da 1ª Região, “Norberto, sentindo-se prejudicado pela ação da fiscalização trabalhista em suas fazendas, prometeu matar o fiscal do trabalho Nelson”.
O valor combinado entre o contratante dos pistoleiros e os executores do crime teria sido R$ 25 mil. Os Mânica sempre afirmaram não ter nenhuma relação com a morte dos servidores. Nesta sexta, o Ministério Público Federal (MPF) de Minas Gerais divulgou nota na qual critica a postura da defesa: “Em virtude dos diversos recursos interpostos pelos advogados dos réus, sobretudo dos mandantes, os autos do processo ainda não retornaram à 9ª Vara da Justiça Federal em Belo Horizonte para julgamento pelo Tribunal do Júri”.
Processo e impunidade
Existe a expectativa de que o julgamento ocorra este ano. O processo corre em segredo de Justiça no Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, em Minas. Três anos atrás, uma decisão suspendeu o processo contra Antério Mânica, a pedido do Ministério Público. Por essa decisão, os outros oito acusados devem ser julgados antes.
O tribunal informou que todos os recursos ajuizados naquela instância já foram julgados. No final de dezembro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou pedido de anulação, feito por dois acusados, da decisão que os levará a julgamento. O processo está pronto para retornar a Minas Gerais. Dos nove incluídos, entre mandantes e executores, quatro estão soltos.
Apesar de não acompanhar o processo no TRF, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE, ex-Delegacia Regional do Trabalho) de Minas Gerais preocupa-se com a demora no julgamento. “Essa sensação de impunidade pode estimular a ação de maus empregadores, tanto na área urbana como rural”, diz o chefe de Saúde e Segurança da SRTE, Ricardo Deusdará.
Segundo ele, depois de 2004 todas as fiscalizações passaram a ser acompanhadas de escolta policial. “A orientação é a mesma para qualquer empresa: cumprir o que está preconizado na norma legal”, afirma Deusdará. Em 2009, foram feitas 19 inspeções na regional de Paracatu (onde fica Unaí) e em 2010, 90. Hoje, 15 dos 180 auditores fiscais de Minas atuam na região.
Em uma dessas ações, em outubro do ano passado, o Grupo de Fiscalização Rural da SRTE de Minas Gerais, em operação com apoio da Polícia Rodoviária, resgatou 131 trabalhadores em condições consideradas degradantes em lavouras de feijão. Oito deles eram menores. Os trabalhadores não tinham água potável, alimentação, instalação sanitária, equipamentos de proteção e assistência médica. Vários “moravam” em barracos de lona.
No final de 2008, Antério Mânica recebeu uma medalha da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o que causou protestos. Titular da DRT à época do crime, Carlos Calazans, por exemplo, devolveu medalha semelhante que já havia recebido. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, Durval Ângelo (PT), diz que o fato de não ter havido julgamento até hoje desmoraliza o poder público.
“Existem dois Brasis, o de cima, dos que detêm o poder econômico e político, e o de baixo, dos despossuídos. A Justiça é reflexo disso. Também existem duas Justiças”, diz o parlamentar. Para ele, quem matou os fiscais e o motorista foi o agronegócio, foi o poder político representado não só pelo prefeito, mas pelas forças que o sustentam.
“Não há nenhum tipo de dúvida de que ele (Antério Mânica) é o mandante. Ele praticamente confessou o crime na audiência da Comissão de Direitos Humanos. Ele entrou em várias contradições.”
A impunidade é motivo até de constrangimento para a comissão, segundo Durval Ângelo. “O que vamos dizer para os familiares, para os colegas dos assassinados? A gente sente vergonha.” O deputado também não vê razões para postergar o julgamento. “Se não há mais recursos, por que o júri não é marcado? É como se a cada momento esses fiscais fossem assassinados novamente.”
Em 29 de outubro de 2009, foi sancionada a Lei 12.064, que criou o Dia Nacional e a Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data escolhida foi justamente 28 de janeiro, em memória dos servidores mortos em Unaí.
Da Rede Brasil Atual (Vitor Nuzzi)