Após desculpas, Zara anuncia ´acordos´ ainda não fechados

Um mês após a divulgação do flagrante de mão de obra escrava na fabricação de peças de roupa da marca Zara, executivos do grupo espanhol Inditex, que é dono da grife, compareceram ao Congresso Nacional brasileiro para pedir desculpas públicas pelo ocorrido.

“Gostaríamos de pedir desculpas por não termos tido conhecimento desta situação antecipadamente, de modo a evitá-la”, disse Jesus Echevarria, diretor global de comunicação da Inditex, em reunião da Comissâo de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), convocada para “avaliar a situação e definir propostas de enfrentamento das violações de direitos humanos de trabalhadores estrangeiros no Brasil e do tráfico de brasileiros para exploração em outros países”, realizada nesta quarta-feira (14).

O executivo admitiu, em reação à pergunta do deputado federal Chico Alencar (PSol-RJ), que o impacto gerado pelo caso de exploração de imigrantes sul-americanos em condições análogas à escravidão foi “terrível”. “Não há dano maior que possa afetar uma companhia de caráter internacional como a nossa do que esse que ocorreu”, emendou. Além de Jesus, também compôs a mesa o diretor-presidente da Zara Brasil, Enrique Huerta González, que já havia sido convidado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) a comparecer à reunião com propósitos semelhantes, mas se ausentou.

Aos parlamentares, Jesus reforçou o entendimento de que o flagrante fere valores e princípios da Inditex e se deu por conta de uma “subcontratação não autorizada” do fornecedor, que descumpriu o seu código de conduta obrigatório e previsto em contrato. Declarou ainda que a empresa se coloca como “vítima de uma situação que não foi por ela criada” e que suspendeu a relação com o agente intermediário envolvido (AHA Ind. e Com. de Roupas Ltda.) até a correção das irregularidades apontadas. Enumerou ações sociais como as que atendem duas mil crianças em Ilhéus (BA) e Natal (RN), insistiu ainda que a companhia e a indústria brasileira, em geral, seguem regularmente padrões estabelecidos de qualidade e ainda alegou ter realizado um diagnóstico da cadeia produtiva no país com “mais de 200 verificações”.

O principal objetivo da presença dos representantes da empresa, no entanto, foi o anúncio de novas medidas que estão sendo tomadas em parceria com outras instituições. A Repórter Brasil apurou, contudo, que duas dessas parcerias anunciadas – justamente as que envolvem representantes de trabalhadores e de imigrantes – são apenas promessas de acordos que ainda não foram firmados com as entidades contatadas.

A maioria das providências apresentadas está relacionada a entidades ligadas ao empresariado: como uma linha de telefone para denúncias de abusos de trabalho envolvendo a Zara (0800-7709242), além de um programa de capacitação para fornecedores e um manual de boas práticas, toda elas com a colaboração com o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social; e um sistema específico de pré-avaliação de fornecedores com base em parâmetros da Associação Brasileira de Varejo Têxtil (Abvtex), que reúne as maiores do segmento.

O monitoramento da cadeia por parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias do Setor Têxtil, Vestuário, Couro e Calçados (Conaccovest), anunciado com pompa pela companhia espanhola, ainda não está fechado. Maria Susicléia Assis, do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, que faz parte do Connacovest, confirmou que houve apenas um encontro inicial sobre o tema e que as bases da atuação prática da entidade – que é filiada à Federação Internacional de Trabalhadores do Setor Têxtil, de Vestuário e de Couro (ITGLWF), com a qual a Inditex já tinha protocolo assinado – ainda não foi negociada e, muito menos, concluída.

Também o propalado acordo da Inditex com a Associação Nacional de Estrangeiros e Imigrantes no Brasil (Aneib) para “ajudar na tarefa de regularizar trabalhadores imigrantes bolivianos e de qualquer outra comunidade de imigrantes para identificar as eventuais situações precárias de trabalho sobre as quais não se tem conhecimento” não passa de uma “promessa”, conforme definição do próprio presidente da Aneib, Grover Calderón. “O que existe até o momento é apenas uma intenção”, acrescentou o representante da entidade, que clama por projetos que possam fortalecer os direitos de estrangeiros que vivem e trabalham em situação de vulnerabilidade.

Interrogações
No discurso dirigido aos congressistas embasado na excepcionalidade do caso, o diretor Jesus assegurou que o sistema de monitoramento aplicado pela empresa “tem sempre atestado um nível satisfatório a nossos fornecedores, por meio de notas A ou B”. Em conversa exclusiva com a Repórter Brasil após deixar a mesa, entretanto, o diretor Jesus não foi capaz de apresentar algumas informações básicas e cruciais referentes à aferição do nível real de confiança que pode ser atribuído ao acompanhamento das cerca de cinco mil confecções que empregam aproximadamente sete mil trabalhadores.

A reportagem questionou, por exemplo, se as intermediárias AHA e Rhodes Confecções Ltda. – envolvida em outra fiscalização que encontrou pessoas produzindo calças da Zara em condições degradantes em Americana (SP) – foram alguma vez avaliadas por auditorias patrocinadas pela Inditex. Na sequência, indagou também quais teriam sido os vereditos e os possíveis planos de ações recomendados, caso essas análises tenham sido realizadas. As respostas para ambas perguntas não foram dadas pelo executivo global da Inditex, que se justificou afirmando que seria preciso checar os objetos das interrogações em meio ao conjunto de dados sobre as ações promovidas nos últimos anos, que foi repassado em formato de dossiê para a Comissão de Direitos Humanos – e também prometido à Repórter Brasil.

A posição sustentada pela empresa tampouco encontrou respaldo no pronunciamento do auditor Luís Alexandre de Faria, da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de Sâo Paulo (SRTE/SP), que coordenou não só as fiscalizações do caso Zara, mas também de outras grandes redes varejistas como as das lojas Pernambucanas, Collins e Marisa – além das operações envolvendo a marca de moda jovem 775 e até uma oficina que explorava trabalho escravo na confecção dos coletes utilizados pelos recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“O modelo atual de monitoramento da Zara permite esse tipo de ocorrência [de trabalho análogo à escravidão em oficinas ilegais de costura] e precisa ser mudado”, colocou Luís, que coordena, juntamente com a auditora fiscal Giuliana Cassiano, o grupo de combate ao trabalho escravo urbano da SRTE/SP. “A partir do flagrante em Americana (SP) ocorrido em maio [de 2011], prosseguimos com investigações e fiscalizações que acabaram comprovando que aquela situação não era isolada”.

O quadro semelhante encontrado em duas oficinas nas quais peças da Zara estavam sendo produzidas foi descrito com minúcias por Luís: desde a extrema precariedade, os riscos iminentes de saúde e segurança, até a degradância de espaços superlotados utilizados simultaneamente como espaço de moradia e local de trabalho por famílias inteiras com crianças. Das jornadas exaustivas à discriminação étnica, dos pagamentos ínfimos por produção às anotações em cadernos que remetem à servidão por dívida e ao tráfico de pessoas até os relatos cabais de impedimento da liberdade de ir e vir.

Mereceu particular destaque por parte do auditor a situação da AHA – que sequer apareceu entre os convidados da reunião na Câmara Federal, mas foi chamada e não compareceu à Alesp. Em termos econômicos, acrescentou, “a AHA só existe por causa da Zara”, vez que atuava apenas como “entreposto logístico” para o funcionamento do negócio da marca, que detém, segundo evidências colhidas pela fiscalização, toda a direção produtiva do processo.

Foi repetida por ele a constatação de que 46 mil peças de roupa foram “produzidas” para a grife espanhola pela AHA, entre abril a maio deste ano, sem que a “fornecedora” tivesse uma única costureira de linha de produção em seu quadro funcional. Quando chegaram à planta da AHA, em julho, apenas uma solitária “piloteira” confeccionava peças-pilotos de roupas da Zara. Qualquer averiguação mínima, completou Luís, concluiria por óbvio que a produção em escala não estava diretamente a cargo da contratada.

Cobranças
Presidente da Frente Parlamentar pela Erradicação do Trabalho Escravo, o deputado federal Domingos Dutra (PT-MA) fez um elogio à fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) – de acordo com ele, uma “conquista da cidadania brasileira” – e sugeriu que, como mais uma forma de se redimir, a companhia declarasse publicamente apoio à aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que prevê o confisco da propriedade onde houver exploração de trabalho escravo. Em resposta, Jesus assumiu não ter conhecimento sobre a matéria, mas que a empresa está disposta a apoiar iniciativas que visam erradicar esse tipo de crime.

Para Erika Kokay (PT-DF), a Zara, em nome da redução de custos e do aumento do lucro, passou por cima da dignidade das pessoas e rasgou as leis brasileiras construídas durante anos “com muita luta”. Na visão dela, as lojas da marca não deveriam sequer funcionar normalmente após esse caso de “profunda injustiça” que descortinou um submundo “abaixo do marco civilizatório”.

Um dos autores do requerimento que viabilizou a reunião, Arnaldo Jordy (PPS/PA) ressaltou que a extensão de crimes como esse pode ser “bem maior do que se imagina” por conta da reprodução do recurso das subcontratações em cascata nos mais diversos setores da economia, que escapa às normas jurídicas e deve merecer mais reflexões por parte do Legislativo.

Nesse sentido, estudo sobre as alternativas em termos de ajustes e formulação de novas propostas voltadas para contemplar as preocupações relativas ao trabalho escravo urbano e às subcontratações em série já foi solicitado pela presidente da CDHM, Manuela D´Ávila (PCdoB-RS). Ela adicionou que deve solicitar um pedido de informações ao MTE com o quadro de auditores fiscais do trabalho na ativa com vistas à possibilidade de multiplicação de grupos similares ao da SRTE/SP em outros Estados, especialmente por conta da série de ocorrências em outros segmentos como o da construção civil.

Na conversa com a Repórter Brasil, o diretor da Inditex descartou por completo as possibilidades de rever o sistema de produção de peças de roupa no Brasil baseado em subcontratações – que, apesar de somar quase 5 milhões de peças em 2010, consiste em menos de 1% do total produzido no mundo – ou de instalar fábricas próprias no país como no município espanhol de Arteixo, onde fica a sede do grupo. O negócio da companhia, complementou, tem como base a contratação de “provedores externos”. “Não mudaremos isso. É a filosofia retailer [centrada na venda direta ao consumidor]”.

Janete Pietá (PT-SP), por seu turno, fez cobranças a respeito do que foi feito em relação às trabalhadoras e aos trabalhadores libertados. Da parte da empresa, o diretor disse que a Inditex está em contato com as 15 pessoas. Luís informou, contudo, que os resgatados receberam apenas as verbas rescisórias por direitos trabalhistas – que foram pagos pela intermediária AHA -, receberam a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) provisória e estão sendo contemplados com recursos do Seguro Desemprego do Trabalho Resgatado.

O auditor fiscal do trabalho que coordenou a operação acrescentou que vem sendo desenvolvimento um trabalho em rede não só pelo MTE, mas por outors órgãos como a Defensoria Pública da União de São Paulo (DPU/SP), o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo e a Policia Federal (PF) para a regularização da situação migratória e para outras possíveis ações em âmbito criminal e trabalhista, inclusive com eventuais pedidos indenizatórios. “A própria empresa deveria arcar com a indenização das vítimas”, indicou a deputada Janete.

Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com obrigações de intensificação da vigilância sobre a cadeia deve ser proposto, como se deu nos casos anteriores envolvendo o varejo têxtil. Em âmbito administrativo, os responsáveis podem vir a ser incluídos na “lista suja” do trabalho escravo – cadastro de empregadores envolvidos em flagrantes amparado por portaria interministerial do MTE e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR). “Trata-se de um dos instrumentos mais eficazes”, qualificou Luís. Além da incômoda mácula na imagem, quem consta da “lista suja” tem restringido o acesso a empréstimos com recursos públicos federais, assim como passa a ser vetado como parceiro econômico pelas empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo – iniciativa em marcha desde 2005 que jamais contou com a adesão da Zara Brasil ou da Inditex.

Do Repórter Brasil