Blindagem da guerra fiscal
Hoje, os benefícios fiscais relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) devem ser concedidos e revogados nos termos previstos na Lei Complementar Federal n.º 24, de 1975, recepcionada pela Constituição federal de 1988. Referida lei exige que qualquer proposta concessiva de benefício fiscal ou financeiro-fiscal relativo àquele tributo seja aprovada pela unanimidade dos Estados. O foro de decisão é o Conselho de Política Fazendária (Confaz). Fora disso, a concessão é inconstitucional.
A regra da unanimidade implica, por óbvio, poder de veto de qualquer Unidade Federada, que tem o sagrado direito de impedir que proposta lesiva à sua economia e/ou ao seu erário seja aprovada. Essa exigência não é resquício do regime autoritário então vigente, como têm pontuado leigos em matéria tributária, mas, sim, imposição da lógica econômica do tributo: sendo as operações interestaduais tributadas, o ICMS cobrado pelo Estado remetente da mercadoria é integralmente devolvido ao adquirente dela no Estado de destino, por meio do direito ao crédito do montante pago pelo fornecedor interestadual. Esse crédito é moeda para pagamento de ICMS em seu Estado.
A alíquota interestadual transfere, portanto, receita do Tesouro do Estado destinatário da mercadoria para o do remetente. Mais do que isso, ela faz com que decisões tributárias de um Estado repercutam na economia dos demais. Talvez os críticos dessa regra não saibam que o artigo 113 do Tratado da União Europeia também exige que as decisões de política sobre tributos indiretos sejam tomadas por unanimidade. Fosse zerada a alíquota interestadual do ICMS, não haveria necessidade de cada Estado consultar os demais para fazer política tributária. Estaria, então, tributando exclusivamente o consumo de seus cidadãos/eleitores e suas decisões não teriam nenhum efeito sobre a economia e o Tesouro dos demais Estados.
Entretanto, a regra da unanimidade não “pegou” e os Estados, com o intuito de atrair investimentos para seus territórios – sempre com a justificativa de que o governo federal não tem política de desenvolvimento regional -, vêm desrespeitando a Constituição e oferecendo benesses de ICMS a empreendedores selecionados. Agridem, assim, o princípio da isonomia: com a guerra fiscal, tem-se, concorrendo no mesmo mercado, produtos idênticos com cargas tributárias diferentes. A sutileza da guerra fiscal é que seu “funding” é alimentado pelos cofres dos Estados destinatários das mercadorias subsidiadas, e não pelo generoso Estado concedente do benefício. É o seu aspecto cruel: além de ter a competitividade das suas empresas ofendida, o Estado destinatário paga a conta da “festa”.
No ano passado, o Supremo Tribunal Federal, numa única sessão, declarou inconstitucionais 21 leis e decretos estaduais concessivos de benefícios fiscais de ICMS, e há uma Proposta de Súmula Vinculante (n.º 69) naquela Corte para tornar tal entendimento celeremente aplicável a todos os atos de concessão unilateral desses benefícios, o que porá fim a esse trágico conflito. Mas os Estados “guerreiros” não se dão por vencidos e reagem. Querem legalizar a farra, acabando com a exigência da unanimidade (poder de veto) para a aprovação dos benefícios fiscais.
Tramita no Senado o Projeto de Lei Complementar (PLS 85/11) que estabelece novas regras para a concessão de benefícios de ICMS, substituindo a unanimidade por quórum de maioria absoluta (14 votos) dos Estados, sendo pelo menos um de cada uma das cinco regiões geoeconômicas do País. Aprovado esse projeto, os Estados “guerreiros” – há mais de 14 nessa categoria – poderão alegremente legalizar seus “programas de incentivos fiscais de ICMS” para atrair indústrias para seus territórios e os demais assistirão, inermes, à deterioração da competitividade de seu parque industrial e de sua receita tributária. É a legalização da guerra fiscal.
O Estado de S. Paulo