Brasil: Os anos Lula contam uma história bem bonita, diz Le Monde
Lula é o porta-estandarte da transformação do Brasil de potência virtual para potência real
O “Financial Times” o retratou como o Cristo Redentor, a estátua que, do alto do Corcovado, domina a baía do Rio de Janeiro. De braços abertos, protetor, zelando para sempre pelos brasileiros. Na premiação do Oscar 2011, o filme que representará as cores do Brasil é um longa-metragem que conta sua vida: “Lula, o filho do Brasil”. Até esse dia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já terá deixado o poder – quase santificado, herói nacional, com um índice de popularidade recorde. A eleição presidencial acontecerá neste semestre.
Dilma Rousseff, 62, a candidata consagrada por Lula, está sendo dada como vencedora: levada pelo apoio do “grande homem”, ela poderá ganhar logo no primeiro turno, no dia 3 de outubro. Ela assumirá o cargo em janeiro. Será o fim dos “anos Lula”, os dois mandatos exercidos à frente do Estado pelo líder do Partido dos Trabalhadores, ex-líder do sindicato dos metalúrgicos, oitavo filho de uma família humilde, que deixou a escola aos 12 anos para se tornar engraxate de sapatos, vendedor de amendoins e depois torneiro mecânico na indústria automobilística aos 14 anos. Dessa adolescência passada em fábrica, o presidente Lula guarda a marca: um dedo amputado – não muito frequente na profissão.
Foi tudo isso que criou o mito. Mas não só isso. Se os anos da presidência Lula, 2002-2010, são celebrados desenfreadamente, é porque o homem está encarnando um momento-chave na história do país: o acesso do Brasil ao status de grande potência emergente. Juntamente com a China, a Índia e alguns outros, o Brasil é um dos Estados que estão modificando o mapa da distribuição do poder nesse início de século 21. Lula é o porta-estandarte dessa transformação, a passagem da potência virtual – “o Brasil, esse país do futuro e que continuará o sendo por muito tempo”, diziam no início do século passado – para potência real.
Primeiramente, é um sucesso econômico. O ex-líder do sindicato dos metalúrgicos “teve inteligência para aproveitar a onda da política conduzida por seu antecessor”, explica Alfredo Valladão, professor no Instituto Sciences Po e coordenador do centro de estudos União Europeia-Brasil. Lula aperfeiçoou a obra do presidente Fernando Henrique Cardoso, o homem da estabilização do real, a moeda nacional: ortodoxia monetária, privatizações, estabelecimento do país na globalização. Realista, mas fiel a seus compromissos, Lula somou a isso sua marca social: aumento do salário mínimo, bolsa de auxílio às famílias mais pobres.
Oitava economia mundial, o Brasil – 190 milhões de habitantes – acumula uma lista de trunfos impressionantes: riquezas naturais infinitas, indústria diversificada e, nesse país que tem 15 vezes o tamanho da França, um aproveitamento de terras que faz dele a principal potência agrícola mundial.
Em 16 anos – os mandatos FHC e Lula – , a classe média, já central, ganhou 35 milhões de pessoas. A economia se apoia em uma forte demanda interna e consegue resistir aos choques externos. Ela é levada por uma confiança no futuro apontada por todas as pesquisas de opinião. Os brasileiros estão otimistas em relação ao seu país; ao contrário dos europeus ou até mesmo dos americanos, eles estão certos de que seus filhos viverão melhor do que eles. Essa confiança também tem Lula, falastrão, de sorriso jovial, ombros de lenhador, charme para dar e vender.
Lula prevê: “o Brasil não ficará de fora do século 21, como foi o caso no século 20”. Fortalecido pelo peso de sua economia, o Brasil, assim como seus companheiros do topo das potências emergentes, a China e a Índia, quer sua parte de poder político na arena internacional. Ele briga por uma vaga de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU; por mais direitos no Fundo Monetário Internacional (FMI); pelo fim do G8, que reúne as potências mais antigas, as do Norte, em benefício da perpetuação do G20,onde países como o Brasil, a Turquia e a Indonésia exercem um papel à altura de sua importância econômica.
O Brasil quer ter peso sobre as questões do mundo. Mas em que sentido? Aqui, sem ingenuidade: por mais justificada que seja, essa ambição não deve ser interpretada como particularmente altruísta ou generosa. A diplomacia de Lula é a de uma potência que defende primeiramente seus interesses. É o perfeito reflexo do comportamento dos emergentes no cenário internacional. Os emergentes são, na maioria das vezes, adeptos do livre-comércio: na Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil quer uma nova rodada de liberalização do comércio e protesta contra o protecionismo agrícola da Europa. Os emergentes são soberanistas: nada é mais estranho a países como o Brasil ou a China do que a ideia de um direito de ingerência – ainda que humanitário – que passaria por cima do princípio da soberania dos Estados. E dessa posição advém outra: os emergentes não são adeptos dos direitos humanos, no sentido em que a defesa de certos princípios justificaria se não transgredir aquele da soberania dos Estados, pelo menos ser prudente na escolha de suas amizades.
É o lado sombrio dos anos Lula. Em nome de uma solidariedade Sul-Sul, ele mantém com o iraniano Mahmoud Ahmadinejad uma relação de camaradagem além do que uma política real exigiria; no dia seguinte às eleições fraudadas, na verdade transformadas em golpe militar pelo mesmo Ahmadinejad, ele esbravejou, peremptório, que não havia ocorrido fraude em Teerã; em visita a Cuba, de braços dados com outro barbudo, ele fez pouco da greve de fome mantida pelos prisioneiros políticos do regime castrista – ele que, preso por um tempo pela ditadura militar brasileira, também fez greve de fome…
É uma lição. Mesmo presidida por Lula, uma potência emergente continua sendo um Estado; ela não é uma ONG.
Esta crônica foi inspirada vergonhosamente na série especial do Le Monde, “Brasil, um gigante se impõe” (98 páginas, 7,50 euros), à venda até novembro, e que deve muito a Martine Jacot e a nosso correspondente no Rio de Janeiro, Jean-Pierre Langellier.
Do UOL / Tradução: Lana Lim