Chineses entram no reservado mercado dos carros mais baratos

O vereador do município de Francisco Morato (SP) Anderson Domingos da Silva (PT) foi fiel a uma marca de automóveis ao longo de 15 anos, desde que começou a dirigir. Hoje, porém, ele se divorciará oficialmente da Volkswagen, assim que entrar numa concessionária da JAC, nova marca chinesa, para buscar o seu novo carro.

A escolha, que para muitos pode ser encarada ainda como ato de coragem, foi baseada em detalhada análise. Começou com pesquisa de preços: o veículo chinês era mais barato do que um similar da própria Volks, o Voyage, e também na comparação com o Prisma, da General Motors.

Anderson decidiu saber o que os compradores de carros chineses diziam nas comunidades da internet. Depois disso, o J3, modelo escolhido, passou pela mais dura prova: o vereador fez um test drive de uma hora e meia e sua esposa outro quase tão longo. O trajeto foi minuciosamente escolhido por ele, levando em conta pavimentos mais difíceis, parecidos com o que ele encontra no seu dia a dia.

O que faz um consumidor fiel mudar para os automóveis que começam a chegar de outros países? Anderson repete o que muitos já disseram e que segue o discurso do apresentador Fausto Silva, garoto-propaganda que firmou contrato de um ano com a JAC: carros simples saem de fábrica com itens que no Brasil, durante muito tempo, pareciam exclusivos de modelos para classes endinheiradas: freios ABS e airbags – itens de segurança há tempos obrigatórios no Primeiro Mundo -, além de ar-condicionado e direção hidráulica – confortos que só quem circula nas ruas congestionadas dos centros urbanos sabe dar valor.

As montadoras que se instalaram no Brasil a partir da década de 50 passaram anos operando com mercado fechado ou protegidas pelas taxas do Imposto de Importação. A valorização do real mudou esse quadro. Mas o que mais protegeu a indústria local até aqui foi a ausência de concorrência no segmento de carros mais baratos.

As montadoras instaladas no país passaram anos vendendo como acessórios à parte itens como protetor de carter
Os modelos de luxo estrangeiros, que são importados também pelas montadoras, não colocam em risco uma indústria que concentra mais de 60% da produção em modelos mais simples.

Com a maior fatia do mercado sob seu domínio, a indústria nacional passou anos empurrando como acessórios pagos à parte itens como protetor de carter. O consumidor agora se vinga, comprando carro chinês. O Gol que Anderson vendeu por R$ 15 mil para dar de entrada no novo veículo não tinha sequer ar quente, diz ele. O sedã chinês “com tudo”, como se diz nesse mercado, vai custar R$ 40,9 mil. Os R$ 1 mil de diferença em relação ao preço de tabela referem-se à pintura metálica.

Nos últimos meses, os vendedores passaram por treinamentos intensos. Do lado das marcas estrangeiras, há resposta para tudo. A mais usada, e mais próxima da realidade, é que, uma vez globalizada, essa indústria desenvolveu a habilidade de fazer carros iguais ou parecidos em qualquer parte do planeta. O nome China ainda não serve de propaganda. Dizer que o desenho do carro foi feito por renomado centro estilista italiano – a Pininfarina – é apenas uma das ferramentas de marketing.

Mas vale a pena arriscar? Quem pensa como Anderson vai aproveitar que a marca chinesa lhe deu seis anos de garantia – a mais longa do mercado. Se seus planos derem certo, ele trocará o veículo por outro novo um ano antes de a garantia expirar. Se até lá a convivência com for boa, ele poderá partir para casamento e fidelidade com uma nova marca.

A chegada de consumidores como Anderson é registrada em um sofisticado gráfico instalado no escritório da JAC na Vila Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo. Por meio de quatorze monitores, de cerca de 40 polegadas cada um, o presidente da empresa, Sérgio Habib, monitora aquilo que mais lhe dá prazer na vida: vender automóveis.

Essa vocação não é nova. Habib é um velho conhecido no mercado de veículos, principalmente pela sua passagem na Citroën. Ele era o presidente da marca francesa antes de decidir ser o importador da JAC. A equipe que monitora a marca chinesa ocupa apenas uma parte do gigantesco galpão que o empresário ergueu nas proximidades do Ceagesp, entreposto paulistano. Dali ele comanda ainda outras empresas da chamada SHC Holding, incluindo a importação da luxuosa Jaguar, seguro, locação e ainda as suas concessionárias Citroën.

As concessionárias Citroën de Sérgio Habib representam 46% das vendas da marca francesa no Brasil. Nenhum dos dois lados fala sobre eventuais conflitos. Esta semana a Citroën lançou a nova versão de seu compacto C3 por R$ 37.990, o mesmo preço do J3 hatch.

Habib deixou a presidência da Citroën em junho de 2008 com a sensação de que poderia continuar no mercado sendo mais do que um concessionário. Visitou mais de 10 montadoras chinesas até encontrar a parceira que lhe trouxe tranquilidade em relação ao que mais o preocupava. Ele poderia, segundo o contrato, opinar e até mudar itens dos carros que vêm para o Brasil.

Foram muitas mudanças, segundo ele, porque o consumidor brasileiro não aceita certos desleixos, como rebarbas em tecidos do acabamento interno. Não foi a sua equipe a única a experimentar os carros. Habib decidiu entregar cinco veículos nas mãos de motoristas de taxi. A análise dos taxistas trouxe a necessidade de mudar a densidade da espuma do estofamento. “Afundava muito”, segundo disseram.

As mudanças feitas com a intervenção brasileira agradaram tanto, segundo Habib, que uma versão baseada nessas modificações estará disponível também no mercado chinês. O importador se deu ainda ao luxo de mudar cor e padrão do logotipo da marca. Mas o que ele não esperava era ouvir os vendedores contarem sobre os clientes que entram nas lojas porque querem “comprar o carro do Faustão”.

As classes de renda que Habib quer atrair estão longe do que o mercado de importados costumava atrair no passado. Segundo ele, o objetivo maior é tirar pedaços de participação das quatro maiores montadoras – Fiat, Volkswagen, General Motors e Ford. Porque é na ascensão das classes de menor poder aquisitivo, estimuladas pela facilidade do crédito, que se sustenta o crescimento das vendas no país que já é o quinto maior mercado do mundo, com 3,5 milhões de veículos por ano.

A briga promete. Os importadores de marcas que não têm fábricas no Brasil estarão todos reunidos hoje na tradicional entrevista que a Associação Brasileira das Empresas Importadoras de Veículos (Abeiva) realiza mensalmente para divulgar números. O motivo do reforço de representantes no encontro com a imprensa hoje é formalizar uma posição em relação às últimas medidas do governo para o monitoramento das importações de veículos. Na semana passada, foi fixada a exigência de deferimento para novas guias de importação apenas por meio do Siscomex (Sistema de Comércio Exterior). A ideia inicial era deixar de liberar automaticamente os veículos provenientes da Argentina, uma maneira de reagir ao fato de o país vizinho ter adotado medidas protecionistas contra produtos brasileiros. Os importadores discordam, porém, com extensão dessas medidas a veículos vindos de outros países.

Chineses contratam executivos de concorrentes
As empresas que representam as marcas de veículos chinesas estão interessadas em captar um pouco do conhecimento que os quatro maiores fabricantes de automóveis do Brasil adquiriram ao longo dos mais de 40 anos de história no país. Por isso, decidiram contratar executivos que já trabalharam nessas empresas.

O economista Ricardo Strunz acumulou 30 anos de experiência na indústria automobilística. Trabalhou em cargos de direção na Ford e na Fiat. Há um ano foi contratado pela CN Auto, empresa que ressuscitou as vans Towner e Topic, que nos anos 90 eram fabricadas no Coreia. Agora são importadas da China e levam o mesmo nome.

O engenheiro Ronaldo Mazará Jr. também carregou sua experiência em empresas como General Motors e Delphi para uma representação chinesa. Ele está desde o começo do ano com a Lifan, que traz utilitários da China.

Nos dois casos, as direções das empresas importadoras não tinham nenhuma relação com o setor automotivo. A CN Auto pertence a uma holding ligada à área financeira, a Omni. A Lifan é do grupo Effa, do empresário Eduardo Effa, que se aproximou da indústria chinesa a partir da importação de enfeites de Natal. Trata-se de um caso parecido com a representação da marca Chery, que pertence a um grupo da indústria de alimentação do interior paulista.

A Chery já anunciou que vai construir uma fábrica em Jacareí (SP). Em menos de dois meses será a vez da CN Auto definir local para fábrica no Brasil. Segundo Strunz, o investimento terá parceria entre chineses e o grupo brasileiro.

O grupo Effa também está em busca de uma área para instalar um centro de desenvolvimento de veículos no país. Mazará foi contratado para comandar o trabalho. Segundo ele, o centro, que consumirá US$ 70 milhões em quatro anos, vai identificar as necessidades do consumidor brasileiro. “Até agora os centros de pesquisa chineses se baseavam nas características e requisitos técnicos dos mercados da Europa e Estados Unidos.”

Provisoriamente, o centro funcionará no escritório da empresa, em Barueri, na região metropolitana de São Paulo. A equipe de engenheiros já conta com cinco brasileiros e um chinês. O plano é aumentar o grupo para 12 pessoas ainda este ano e para 50, até 2014.

Até aqui, as quatro maiores montadoras do Brasil não demonstravam preocupação em relação aos importadores de marcas chinesas de nicho. No Brasil, a produção de Fiat, Volkswagen, General Motors e Ford se concentra em automóveis. As quatro eram donas de 87% do mercado de automóveis no Brasil em 2002, segundo dados da Fenabrave. A soma dessas fatias foi para 75,75% em 2010 e para 73,3% no mês passado. Apesar da queda, ainda é um segmento dominado pelas quatro.

“Nosso objetivo não é concorrer com as marcas maduras”, diz Strunz. A CN Auto, como explica, decidiu investir no segmento das vans, no qual as montadoras veteranas “não se interessam”.

O foco, diz o executivo, é atingir o consumidor das classes C e D que estão começando a ter negócio próprio, como lavanderia e floricultura, mas também querem o veículo para passear nos fins de semana. A partir dos depoimentos dos compradores, aliás, estão sendo desenvolvidas versões, como uma que leva baú térmico.

Do Valor Econômico