Cidadania|Rumo incerto

O Projeto Boracea, em São Paulo, já mostrou ser possível proporcionar teto, aprendizado, renda e dignidade a moradores de rua. Agora, parece nada mais que um abrigo onde dormem o ócio e o desalento

Só na lembrança
Maria chegou a freqüentar oficinas de reciclagem, manicure e computação no espaço

Por Xandra Stefanel

Rogério Helena já foi auxiliar de enfermagem, perdeu emprego, família e hoje, aos 40 anos, tem como companhia as cachorras Suzi e Dudu. Antes de dominar o ofício de percorrer a cidade com sua carroça catando e separando lixo, sua morada era a rua. Como a de José Ismar, de 58 anos, que depois de se separar dos parentes e não conseguir mais trabalho como carpinteiro passou dois anos alternando marquises do bairro do Cambuci, na capital paulista, com o pouso em albergues. Quando os prazos de estadia venciam, ele voltava para a rua. Seu Zé também ganhou um cachorro “de raça”, mas teve de se desfazer dele porque os albergues não o aceitavam.

De acordo com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), da USP, em 2003 a cidade de São Paulo tinha cerca de 10 mil pessoas em situação de rua, 60% em albergues, como Zé Ismar, e os demais ao relento, como Rogério. Naquele ano, a Prefeitura de São Paulo criou um albergue novo, grande, para abrigar, além dos usuários, suas carroças e cachorros: o Projeto Oficina Boracea. Com a proposta de oferecer condições de convívio, oficinas e perspectivas de geração de renda para as pessoas em situação de rua, o projeto era coordenado pela Secretaria de Assistência Social e, com parcerias de organizações não-governamentais, fornecia alimentação, abrigo, higiene, cultura, educação, qualificação e encaminhamento para vagas no mercado.

“O Boracea foi todo concebido com intuito de não ser mais um albergue, mas sim um centro de treinamento e prestação de serviços que oferecesse estadia temporária às pessoas com suas carroças e seus animais de estimação”, lembra a professora e coordenadora do Núcleo de Seguridade e Assistência Social da PUC-SP, Aldaíza Sposati, ex-secretária de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo. Rogério Helena foi um dos primeiros usuários. “Gostei muito. Eles receberam bem a Suzi e a Dudu e eu fiquei em um quarto comunitário. Se eles não aceitassem minhas cachorras, talvez eu estivesse na rua até hoje.” Rogério não usava o espaço só para dormir. Aprendeu o processo completo da reciclagem do lixo – coleta, seleção, prensa e venda dos materiais. Juntou economias e alugou o quarto-e-sala onde mora.

Maria dos Anjos Rosendo, de 36 anos, ficou no Boracea de agosto de 2005 a dezembro de 2006. Freqüentou oficinas de reciclagem, manicure, computação. Nessa época ainda eram realizados os cursos profissionalizantes, além de estágios remunerados na área de alimentação, lavanderia e enfermagem. “Eu fazia unhas das mulheres que moravam no albergue e vendia cafezinho. Consegui alugar uma casinha, passei o Réveillon na casa nova. A reciclagem me fez ter mais condições, hoje eu dependo dela para sobreviver, manter meu filho de 2 anos e pagar o aluguel de 200 reais.” Maria dos Anjos faz parte da Cooperativa de Catadores da Barra Funda (Coopersoma).

Mudança de rumo

O flanelinha Joel Marques Bezerra, 44 anos, chegou ao Projeto Oficina Boracea em fevereiro deste ano. Passou os últimos 29 anos morando na rua. “Acordo, tomo café, tomo banho, almoço e fico conversando com o pessoal. Não vejo nada acontecendo”, relata. Seu “vizinho” João Batista Caetano também não vê. Depois de um mês de estadia, além de não ter nenhuma atividade para “passar o tempo”, passou a se incomodar com um bichinho que o atormenta quando vai dormir. “É difícil agüentar as muquiranas na cama, dá muita coceira”, reclama.

No ano passado, a prefeitura trocou a gestão pública p