Cidadania|Vidas marcadas

A hanseníase é tratada pelo SUS, os medicamentos são gratuitos, a incidência está próxima do tolerável pela OMS e não abala a vida social. Mas os regimes de segregação, abolidos há décadas, deixaram suas marcas
Por Xandra Stefanel

    Trauma
Nivaldo teve uma parada cardíaca aos 8 anos de idade ao ver sua mãe ser levada e sua casa incendiada pelas autoridades de saúde

Aos 8 anos, Nivaldo Mercúrio viu sua mãe Rosalina ser
levada à força pelo Departamento de Profilaxia da Lepra, em Itápolis,
interior de São Paulo. Ele, seus quatro irmãos e seu pai foram
obrigados a deixar a casa e vê-la sendo consumida pelo fogo com tudo
dentro. A mãe foi internada em 1935 no asilo-colônia Aymorés, vila
construída para abrigar e isolar os leprosos – não muito longe do
centro urbano de Bauru, a 345 quilômetros da capital. Nivaldo ficou
chocado, temporariamente mudo e teve uma parada cardíaca. Oito dias
depois, encontrou no braço sinais de que estava com a mesma doença que
o separara da mãe.

Somente aos
15 anos procurou um médico. Tratou-se escondido por dois anos. Sem
resultado, e sem poder mais esconder, foi levado pelo pai à mesma
colônia onde a mãe tinha morrido cinco anos depois de internada. Mal se
despediu. Foi deixado no portal da colônia e proibido pelos guardas de
manter contato físico com o pai. Aos 21 anos, acreditava que receberia
alta. Frustrado, perdeu novamente a voz. Foram 31 anos sem dizer
palavra que alguém entendesse. Só voltou a falar após um tratamento
fonoaudiológico. E a resignação. Conformou-se tanto que nunca mais quis
sair da colônia, mesmo depois de livre.

Segregados
da sociedade, os pacientes em Aymorés construíram toda a vila: casas,
cinema, igreja, praça, prefeitura, delegacia, campo de futebol e
cemitério. Todos os dias, 8 da noite, assistiam à sessão de cinema e,
nos intervalos, ouviam a rádio local enquanto participavam do
tradicional footing na praça – homens andando numa direção e mulheres
noutra -, que resultou em muitos casamentos. Aos sábados, o baile no
prédio do cassino era animado pelos mais de 1.800 discos do acervo da
colônia ou pela banda formada pelos pacientes. Tudo para tornar a vida
menos difícil. Histórias assim se repetiam na maioria das 101 colônias
do gênero espalhadas pelo Brasil.

A
partir da década de 50 surgiram os tratamentos com quimioterápicos
contra o Mycobacterium leprae, ou bacilo de Hansen. Até então, a
política de saúde era a internação compulsória. Em 7 de maio de 1962
foi decretado oficialmente o fim do isolamento, mas só em 1976 a
Portaria 165 do Ministério da Saúde enfatizou o tratamento
ambulatorial, a reabilitação social e física do paciente e a
reestruturação dos hospitais-colônia.

Sempre por perto

Em 1962, Maria Freitas Dutra, hoje com 69 anos, foi para a colônia
Aymorés com o marido, Joselino Alves. Quando ele foi fazer um teste
para trabalhar como açougueiro, o casal descobriu que ambos estavam com
hanseníase. Foram obrigados a deixar os quatro filhos, de 2 a 8 anos,
com a avó. Sabiam que dificilmente voltariam a vê-los. “Eu, que sempre
fui uma mãe zelosa, tive que ficar longe dos meus filhos por muitos
anos. Mesmo com alta, eles não deixavam a gente fazer visita. Até hoje
eu tento explicar por que fiquei tanto tempo longe e acho que agora
eles entendem. Foi muito triste”, conta ela, olhos encharcados.

Dona
Maria jamais quis deixar o lugar. Joselino trabalhava como delegado,
ela freqüentava os bailes, o casal tinha amigos. “O diretor falava que
tudo o que tinha lá fora ia ter aqui dentro também. Nem parecia que a
gente estava doente. Era uma festa todo dia”, lembra.

Itália
M