Classe média desafia políticas sociais
O governo federal vive hoje uma transição entre o esgotamento do conjunto de políticas públicas que levaram o equivalente a 32 milhões de pessoas à classe média nos últimos nove anos e o desenvolvimento de novos instrumentos de apoio e aprimoramento das pessoas que ascenderam. Esta é a avaliação de Ricardo Paes de Barros, subsecretário da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência e um dos maiores especialistas em políticas sociais do país. Não à toa, programas coqueluches de transferência direta de renda, como o Bolsa Família, perdem força no noticiário na mesma proporção em que mais e mais famílias deixam a situação de pobreza extrema. “A questão deixou de ser simplesmente a salvação dos pobres, mas também a manutenção, ou crescente evolução financeira, daqueles que hoje estão na nova classe média”, diz o pesquisador.
Segundo Paes de Barros, os técnicos do governo começam a viver dupla inquietação. No primeiro momento, tendo adquirido certo patamar de renda, e, portanto, acesso a bens de consumo, a nova classe média deixa de funcionar como ente homogêneo, em que o simples repasse de dinheiro bastava para uma ascensão rápida, e sim como classe “extremamente” heterogênea, em que a qualificação profissional ganha maior peso. Em seguida, o governo passará a lidar com uma classe “provavelmente mais conservadora que aquela que ascendeu”, porque ciosa do que conquistou.
“Os americanos que se beneficiaram do generoso programa New Deal [implementado pelo governo americano entre 1933 e 1941, para combater a depressão instaurada após o crash de 1929] ficaram, nas décadas seguintes, muito mais conservadores do que eram nos anos 30, justamente porque ascenderam e passaram a se preocupar muito mais com o direito adquirido”, argumentou Paes de Barros, que ontem coordenou o seminário que a SAE promoveu em Brasília sobre a nova classe média. “Os americanos que ascenderam nos anos 30 mudaram sua visão de país e também o que queriam do Estado”, disse, “e isso pode ocorrer no Brasil a partir de agora”.
Para Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil está caminhando para uma tensão entre a nova classe média e aqueles de classes mais altas. Segundo Pochmann, pouco mais de 4 milhões de postos de trabalhos formais com salários superiores a cinco salários mínimos (cerca de R$ 2,8 mil) foram “ceifados” nos últimos dez anos. Ao mesmo tempo, nove em cada dez vagas formais criadas no país no mesmo período pagavam até dois salários mínimos: “Reduzimos a pobreza ao mesmo tempo em que reduzimos a desigualdade, o que sempre aumenta a polarização entre as classes, uma vez que os mais abastados passam a se sentir pressionados.”
Sem endossar a avaliação de Pochmann, o filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Insper, entende que os valores da nova classe média tendem a mudar tão logo a demanda reprimida por bens e serviço seja satisfeita, algo que, segundo ele, já começa a ocorrer para aqueles que ingressaram na classe média há mais tempo. Para Pochmann, a menor participação de integrantes da classe média em representações coletivas – o esvaziamento de partidos, sindicatos e igrejas – torna mais complexa a atuação do Estado, que precisa modelar políticas públicas mais específicas.
Segundo a SAE, a classe média consiste de famílias cujo rendimento varia de R$ 1 mil e R$ 4 mil por mês, considerando-se que ela seja composta por quatro integrantes.
Paes de Barros, que ajudou na formulação e implementação do Bolsa Família, no fim de 2003, afirmou ao Valor que está preparando um projeto, que deve ser encaminhado à presidente Dilma Rousseff que “reformula e agiliza” o pagamento do abono salarial – contracheque do governo a todo trabalhador com carteira assinada que recebe até dois salários mínimos. A ideia, que deve ser rebatizada de “imposto de renda negativo”, usa os mesmos princípios que nortearam a esquematização do Bolsa Família, diz Paes de Barros. “O Bolsa Família não foi a junção de uma série de mecanismos e políticas que já existiam? Então, o imposto de renda negativo será a mesma coisa, vamos tornar o abono mais simples de ser recebido e percebido pelo trabalhador”, afirmou.
Do Valor Econômico