COBERTURA DO PODER
Pobres deles, tão perseguidos
Primeiro ato
Quando o escândalo no Senado ainda não era tão escandaloso assim, quando tudo não passava de discussões em torno de uma residência suntuosa à beira do lago, ou seja, uma autêntica mansão, cujo proprietário, então diretor-geral do mesmo Senado, julgara por bem não declará-la como sua à Receita Federal; quando ainda não se sabia nem a metade do que hoje se sabe, o presidente da Casa, senador José Sarney, reclamou da imprensa.
“Nós estamos sendo o que popularmente se chama de boi de piranha. Enquanto tudo passa, nós ficamos aqui na frente. E os grandes problemas não estão surgindo. Está se discutindo pequenas coisas” [ver no Globo Online (12/3/2009) ou na Folha de S.Paulo (13/3/2009), na matéria “Sarney usa polícia do Senado para vigiar casa”].
Ah, sim, havia também, naqueles dias, um questionamento sobre o uso de agentes da segurança do Senado para vigiar a casa de Sarney em São Luís (MA), mas isso não vem ao caso. Logo entrariam em pauta as horas extras, as quase duzentas diretorias e, mais recentemente, as contas de celulares, os jatinhos fretados e, finalmente, a idéia – lançada pelo senador Cristovam Buarque – de se submeter a plebiscito a manutenção ou a extinção do Parlamento. Está tudo aí, nas páginas dos jornais – páginas que, na opinião de alguns, como se sabe, são a fonte de todos os problemas. Esses jornais não têm coração. Fizeram do pobre Senado “o que popularmente se chama de boi de piranha”.
Segundo ato
Estado de S.Paulo de quinta-feira (9/4), página A8: “Câmara culpa mídia por imagem negativa”. Lá vamos nós outra vez com a mesma ladainha. O discurso, na véspera, foi do presidente da Câmara, Michel Temer, em plenário. Eis o que ele disse:
“Menos as notícias, talvez mais as manchetes e as fotos visam colocar a Câmara dos Deputados em confronto com a opinião pública. Veja que a cultura política vai sendo construída de uma maneira que, se nós não repudiarmos um pouco, não tivermos uma ação muito concreta em relação a isso, não estaremos fazendo um benefício à democracia.”
Outros deputados o secundaram, à esquerda e à direita. “Os editores estabelecem um tema e os jornalistas são obrigados a enquadrar a realidade naquele tema”, diagnosticou o líder do PT, Cândido Vaccarezza. “Não importa o que o deputado fale. Isso pega a todos. Não contribui para a democracia.” Na seqüência, falou também Ronaldo Caiado, do DEM: “É inaceitável. Não é possível essa campanha difamatória que aumenta a cada dia”.
E isso por quê? Simplesmente porque fora noticiado, naqueles dias, que a Câmara destinaria 80 milhões de reais para reformar apartamentos funcionais dos parlamentares. Os representantes do povo, do PT ao DEM, passando pelo PMDB, discordam entre si sobre as mais diversas matérias, mas, nisso, estão de acordo: a culpada é a imprensa.
Terceiro ato
Quanto mais eu ouço autoridades reclamando de jornalistas, mais tenho vontade de ler jornais. Algo estão querendo esconder de mim. Ainda bem que existe a imprensa. Ainda bem que essas autoridades estão incomodadas. A existência de órgãos noticiosos que pelo menos procuram ser independentes é uma garantia muito maior do que a gente normalmente imagina.
Dia desses, eu conversava com um amigo meu que mora numa cidade do interior. Ele estava encafifado com um e-mail que recebera, dando conta de uma falcatrua envolvendo familiares de gente que despacha no Palácio do Planalto. Nada de muito excepcional: todos os dias circulam mensagens caluniosas na internet – e algumas até parecem verdadeiras. Às vezes, confundem as pessoas. E ele estava confuso. Foi então que, falando sozinho, enquanto eu apenas escutava, meu amigo foi chegando por sua conta a uma conclusão sensata. Ele, que não morre de amores pela revista Veja, disse, um tanto aliviado: “Ah, pensa bem: você acha que se isso fosse verdade a Veja ia deixar barato?”
Trocando em miúdos: o meu interlocutor, embora seja ácido em relação ao comportamento habitual dos meios de comunicação, sente segurança de viver num país em que a imprensa pode fiscalizar o poder, pode denunciar o que quer que seja. Mais ainda: ele sente que os jornalistas estão vigilantes, mesmo que de vez em quando passem das medidas. Ele confia que, se alguma prática ilícita estiver em curso, os repórteres, mais cedo ou mais tarde, vão descobrir e vão publicar. Essa possibilidade não resolve tudo, mas pelo menos o tranqüiliza. Melhor assim.
Quarto ato
A opinião pública está perplexa. Além da Câmara e do Senado, há histórias mal contadas também na Assembléia Legislativa do estado de São Paulo. Reportagens de Silvia Amorim no Estadão (6 e 7/4) revelaram centenas de contratações sem concurso e privilégios injustificados de ex-integrantes das mesas diretoras, que conservam gabinetes especiais e outras regalias.
Alguém minimamente ajuizado acha mesmo que tudo não passa de uma campanha difamatória? Alguém acha que não existem caixas pretas? Alguém não gostaria de saber para onde vai o dinheiro do contribuinte? Por acaso alguém acha que não é nosso direito conhecer em detalhes todas essas contas? Será que alguém acha que abrir os números do Senado, da Câmara e das Assembléias não seria um benefício para a democracia?
Sexta-feira da Paixão, meio-dia, mais ou menos. Eu caminho bestamente sob o sol pelas alamedas da cidade universitária, onde sou professor nos dias úteis. Não ando só. A meu lado, uma advogada vai conversando comigo, enquanto percorremos um itinerário incerto entre os prédios vazios, nas cercanias da Politécnica da USP.
“A imprensa é a melhor forma que nós temos de controle social”, ela argumenta. Eu concordo. A expressão “controle social”, nesse caso, é mais que adequada. Imagino um conselho de representantes sindicais e representantes “da sociedade civil” encarregado de exercer “controle social” em instituições públicas. Seus integrantes ganhariam diárias, além de passagens e hospedagem em Brasília. Nada contra os conselhos, por favor, mas vale perguntar: será que fariam um controle mais eficiente do que esse que é exercido por uma imprensa livre? Modestamente, penso que não.
A imprensa é sensível para as necessidades do público, é especialmente sensível para as carências e aspirações da sociedade. Ela vive disso. Exatamente por isso, ecoa de modo relativamente eficaz os reclamos dos cidadãos.
Ainda bem que existe imprensa. Ainda bem que existe opinião pública. Ainda bem que ela está perplexa. Seguimos o passeio e mudamos de assunto. Aquele monumento de colunas em granito tem cara de fascista. O prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo precisa de uma restauração. Que filme a gente podia ver hoje à tarde?
Quinto ato
Falei aqui da revista Veja e vou falar de novo. Na edição corrente (nº 2108, de 15/4/2009), ela deu capa para a reforma do Enem, que será o novo critério de seleção para centenas de universidades brasileiras, públicas e privadas. Reproduzo, a seguir, o primeiro parágrafo da reportagem, assinada por Camila Pereira, Monica Weinberg e Renata Betti:
“Mais de 5 milhões de jovens se preparam neste ano para o vestibular, etapa crucial na vida de um estudante brasileiro. Em 2010, cerca de 1,5 milhão conseguirão ingressar numa universidade – mais gente do que nunca. A novidade é que parte desse grupo não fará o tradicional vestibular, mas será avaliada por meio de outro sistema, anunciado pelo Ministério da Educação (MEC) na semana passada. Trata-se da maior mudança já feita no concurso desde 1911, quando ele surgiu no Brasil. Uma verdadeira revolução. Diga-se desde logo: se as intenções forem cumpridas, o novo sistema não prejudicará o mérito. Os melhores alunos continuarão a ser os escolhidos.”
Parece um discurso panfletário contra o governo Lula? Nem de longe. Aliás, se essas mesmas palavras tivessem sido pronunciadas pelo presidente da República, alguém logo veria nelas uma reedição do “nunca antes na História deste país”. E, no entanto, trata-se de uma reportagem da Veja. Uma reportagem baseada em fatos e em planos bem delineados. Uma reportagem que recolhe depoimentos de gente do ramo, com autoridade na área. Uma reportagem que transmite ao leitor uma visão positiva da reforma pretendida pelo MEC.
Penso comigo: como é que os adeptos das teorias conspiratórias da mídia explicariam essa capa? Qual a intenção oculta que veriam por trás? Qual a armação? Será mais uma jogada maquiavélica para beneficiar a candidatura de José Serra?
Sexto ato
Aqui estou eu, cara a cara com a tela do meu computador. Sei que, outra vez, os leitores deste Observatório irão se insurgir contra mim. Alguns talvez queiram me injuriar outra vez. Dirão que defendo a “mídia dos patrões”. Afirmarão que sou sustentado por organizações da direita. Olho para a tela, acendo um cigarro e prossigo. Quase sorrio. Passa pela minha lembrança uma canção de João Bosco e Aldir Blanc: “Eu estou de bem comigo, e isso é difícil”.
Algo de estrutural está mudando no Brasil, e os fanáticos das teorias conspiratórias não perceberam. Antes, até alguns anos após o fim da ditadura militar, o poder político e o poder da mídia se entrelaçavam perigosamente, em promiscuidade – com exceções conhecidas. À medida que a democracia ganhou vigor, complexidade e ritmo, esses campos se distanciaram um pouco. A imprensa – ainda bem, outra vez – revela as contradições sociais. Dá voz a elas, ainda que de forma desequilibrada. A mídia – não gosto dessa palavra como sinônimo de imprensa, mas ela me escapou -, senhoras e senhores, a mídia é contraditória. Espelha conflitos. A imprensa não pode ser compreendida pelo prisma dos ordenamentos partidários. Muitas vezes, infelizmente, ela se deixa tragar por esse tipo de alinhamento, mas, na sua essência, ela segue outra lógica – e cresce à medida que sabe ser fiel a essa outra lógica.
É por isso que tenho insistido: a imprensa não fez do Senado “a bola da vez” ou “um boi de piranha”. Ela não está em campanha para desmoralizar a Câmara dos Deputados. Ela comete erros, muitos e graves, mas, na sua essência, ela se afirma quando fiscaliza o poder em favor da cidadania. E, em linhas gerais, é isso o que explica o intenso noticiário sobre a administração do Poder Legislativo. É isso também que explica a pauta sobre a reforma do vestibular por iniciativa do MEC, que vem despertando comentários favoráveis em tantos veículos diferentes. É controle social, como alguém me disse, de modo ponderado e perspicaz.
Tenho, no currículo, um amontoado de escritos críticos contra as principais empresas de – vá lá – mídia deste país. Contra quase todas. Não retiro nada do que escrevi. Não retiro uma vírgula. Com a mesma tranqüilidade, escrevo agora que, hoje, no Brasil, o nosso maior problema não é a imprensa – embora esta ainda tenha muitos problemas a resolver. O nosso maior problema está no poder público. Mesmo as transformações regulatórias que a mídia requer dependem, hoje, mais do poder público do que da própria mídia. A democracia precisa de benefícios, como gostam de dizer os deputados. Mas esses benefícios precisam vir da transparência que eles mesmos forem capazes de adotar para as suas próprias prestações de contas. Precisam vir da racionalidade do nosso sistema de ensino. Ainda bem, digo de novo, ainda bem que não dependem do julgamento que as autoridades têm feito dos nossos jornalistas.
A imprensa que precisamos ter é uma imprensa independente e plural, que não aceite ser controlada por governos, por anunciantes, por autoridades e pelos loquazes pregadores da conspiração permanente. O primeiro passo para quem quer melhorá-la é reconhecer e fortalecer sua independência. O resto vai se ajeitando no caminho.
De Eugênio Bucci, do Observatório da Imprensa