Compromisso contra escravidão aguarda ações de governantes
Dez dos 12 governadores que assinaram carta contra o trabalho escravo ficaram devendo explicações sobre providências. Há casos mais graves de descumprimento como o da nomeação de envolvido com a prática criminosa
Durante a campanha eleitoral do ano passado, 29 candidatos a cargos majoritários (Presidência da República e governos estaduais) assinaram a Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo, que estabelece diretrizes e obrigações relacionadas ao combate a esse tipo de crime.
Firmaram o documento a presidenta Dilma Rousseff (PT) e outros 12 chefes do Executivo estadual que venceram o pleito. Passados mais de seis meses das cerimônias de posse, a Repórter Brasil assumiu a tarefa de checar o grau de cumprimento das promessas assumidas na época em que os concorrentes ainda estavam disputando os votos de eleitores.
O resultado da apuração foi frustrante: apenas a governadora Roseana Sarney (PMDB), do Maranhão, o governador Beto Richa (PSDB), do Paraná, e representantes de pastas do governo federal comandado pela presidenta Dilma se manifestaram perante as questões encaminhadas.
Dez governadores que assinaram o compromisso não responderam aos pedidos de informações enviados pela reportagem, que entrou em contato diversas vezes por telefone e por e-mail com cada das respectivas assessorias de imprensa. São eles: André Puccinelli (PMDB), do Mato Grosso do Sul; Marcelo Déda (PT), do Sergipe; Marconi Perillo (PSDB), de Goiás; Jacques Wagner (PT), da Bahia; Omar Aziz (PMN), do Amazonas; Cid Gomes (PSB), do Ceará; Ricardo Coutinho (PSB), da Paraíba; Geraldo Alckmin (PSDB) de São Paulo; Wilson Martins (PSB), do Piauí e Simão Jatene (PSDB), do Pará.
Para além da mera ausência de respostas, há situações mais graves de choque frontal com as cláusulas do compromisso público proposto pela Frente Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) – como a nomeação de secretários envolvidos em flagrantes de trabalho escravo e a extinção de programas e pesquisas estaduais especialmente dedicados à temática.
Nomeações
Nomeado e mantido pelo governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), Sidney Rosa segue à frente da Secretaria de Estado de Projetos Estratégicos (Sepe). Em 2003, 40 trabalhadores foram libertados de trabalho análogo à escravidão da Fazenda Vitória, propriedade de Sidney situada no município de Carutapera (MA). Deputado estadual eleito (e licenciado para ocupar o atual cargo), o secretário ocupava à época o posto de prefeito de Paragominas (PA).
A fiscalização trabalhista sustenta ter flagrado a ocorrência de servidão por dívida, além das condições degradantes do local. Os trabalhadores atuavam na formação de pastagem para criação de gado bovino. Sidney chegou a constar na “lista suja” do trabalho escravo entre 2004 e 2006 e responde a um processo criminal na Justiça Federal do Maranhão. Diante da repercussão, a assessoria do secretário divulgou uma nota de esclarecimento, em que ele contesta a operação, cita sentença da Justiça do Trabalho e afirma que “não tinha gestão direta sobre as atividades administrativas da fazenda”.
A manutenção de Sidney no cargo motivou o envio de uma carta da Conatrae ao governador paraense pedindo a saída do secretário. Um dos trechos da Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo assinada por Simão Jatene – e pelo conjunto dos mandatários em questão – prevê a pronta exoneração de “qualquer pessoa que ocupe cargo público de confiança sob minha responsabilidade que vier a se beneficiar desse tipo de mão de obra”.
“Até o momento, Simão Jatene não se manifestou oficialmente. Enquanto isso, Sidney foi para a Assembleia [Legislativa] se explicar aos parlamentares. Ele procurou a imprensa local e se defendeu. Disse que foi um equívoco e que a questão se resumia apenas a problemas trabalhistas, como a falta de assinatura da carteira de trabalho”, conta Jane Silva, da Comissão Pastoral da Terra no Pará (CPT/PA), representante da sociedade civil na Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae) no Pará.
Ela reforça que as organizações da sociedade civil são contrários à permanência de Sidney em cargo tão estratégico “tendo um passado como o que ele tem”. Sobre o engajamento na luta contra a escravidão, Jane avalia “há mais envolvimento da Frente Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo do que do governo estadual”. “Não sentimos muito comprometimento. A presença do governador na primeira reunião da Coetrae estava prevista, mas ele não compareceu”, relata a agente da CPT.
A primeira reunião, aliás, se concentrou na “apresentação” da Coetrae ao secretário de Estado de Justiça e Direitos Humanos. “Os representantes do estado são todos novos. Em todas as instâncias, ocorreram mudanças. Para eles, foi como se fosse a primeira reunião. Isso trava o avanço. Ninguém tinha acúmulo do que ocorreu nos últimos anos”, completa.
A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa do governador Simão Jatene, mas não teve as suas solicitações atendidas.
O nome de um outro empregador envolvido em caso de escravidão também foi cogitado, conforme espalhou a imprensa regional do Tocantins, para assumir a Superintendência da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) no Estado. Trata-se de Onofre Marques de Melo, filiado ao PMDB, que faz parte da “lista suja” do trabalho escravo desde dezembro de 2010.
Entretanto, a Repórter Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, órgão que está acima da Funasa na estrutura governamental, e foi informada que Onofre não deverá ser nomeado. A presidenta Dilma também assumiu a obrigação de exonerar funcionários públicos ligados a esse tipo de exploração criminosa.
Ex-deputado, ex-secretário da Justiça e ex-presidente do Instituto de Terras do Estado do Tocantins (Itertins), Onofre foi incluído na “lista suja” por causa da libertação de dez trabalhadores (que também preparavam a área para pecuária) submetidos à escravidão na Fazenda Água Roxa, em Ananás (TO).
Um dos outros compromissos listados na carta se refere à articulação política pela aprovação de leis que contribuirão para a erradicação desse crime – como, por exemplo, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que prevê a expropriação de imóveis onde for encontrado trabalho escravo. Enquanto a matéria continuar parada na Câmara dos Deputados, o governo federal, que exerce grande influência na definição da pauta de votações do Legislativo, também permanecerá sem cumprir o prometido.
Programas
Uma das primeiras ações práticas de Wilson Martins (PSB) à frente do governo do Piauí foi extinguir a Coordenadoria de Direitos Humanos, que estava acima da Gerência do Trabalho Escravo. Mesmo diante das diversas críticas da sociedade civil, o governador manteve a decisão.
A Gerência do Trabalho Escravo acabou sendo incorporada pela Secretaria de Assistência Social. Contudo, a escolha dos coordenadores da referida instância, que antes estava sob responsabilidade dos membros do Fórum Estadual de Combate ao Trabalho Escravo no Piauí, passou a ser unicamente do governador. “Queremos que o Fórum continue tendo essa prerrogativa. O governo pode levar em conta outros interesses políticos e não o combate comprometido”, reivindica Joana Lúcia Feitosa Neto, da CPT do Piauí.
Além disso, o Programa “Educar para Libertar”, desenvolvido em parceria com a Secretaria de Educação, foi encerrado. Por meio da iniciativa, foram realizadas formações sobre o tema em pelo menos 22 municípios do Piauí. “O governador cortou o programa de antemão e ainda sugeriu que fizéssemos via teleconferência. Isso demonstra que ele não conhece a realidade dos municípios”, relata a integrante da pastoral.
O programa tem como base a promoção de eventos de sensibilização in loco em municípios com poucos recursos tecnológicos. Segundo Joana, a falta de recursos foi a justificativa apontada pelo governante. A mesma justificativa foi usada para a interrupção da pesquisa sobre migração de trabalhadores, que já estava inclusive com formulários prontos. “As ações estão bem paradas, até mesmo trabalhos iniciados foram interrompidos”, avalia Joana.
Pelo menos até o mês de maio, o governador ainda não havia nomeado o representante do governo estadual no Fórum. “Diversas reuniões já foram realizadas, mas o governo não participa”, reclama Joana. No dia 28 de janeiro, escolhido como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, o Fórum realizou audiência com o governo estadual para apresentar uma série de demandas. “Desde então, nada foi feito. Temos várias reivindicações, como a criação de centro de qualificação de trabalhadores”. A Repórter Brasil ligou e enviou e-mail para o governo do Piauí, mas não obteve retorno.
Respostas
O Maranhão continua sendo foco de aliciadores que buscam mão de obra escrava. A situação poderia ser diferente se houvesse programas efetivos de prevenção e políticas públicas para desenvolvimento local em nível estadual. No final de maio, durante audiência pública sobre trabalho escravo, a sociedade civil reivindicou a criação de uma CPI do Trabalho Escravo. Na ocasião, somente dois parlamentares compareceram a audiência.
Em entrevista por e-mail à Repórter Brasil, a governadora Roseana Sarney sustenta que “o governo tem trabalhado para mudar esse quadro [de aliciamento] no estado com ações efetivas”. Uma delas é a campanha de esclarecimento sobre direitos civis e trabalhistas voltada a trabalhadores, especialmente os da parea rural, em que são apresentadas as formas de trabalho análogo ao escravo. Estão programadas as publicações de duas cartilhas: “Cartilha do Trabalhador Rural – Direitos e Deveres” e “Trabalho Escravo – O que você precisa saber pra não cair nessa”.
De acordo com a governadora, algumas das secretarias estaduais como a do Trabalho e Economia Solidária (Setres) e a de Direitos Humanos e Cidadania (Sedihc) têm “buscado efetivar” a Coetrae do Maranhão com o objetivo de que “Estado, sociedade civil organizada e trabalhadores façam o devido acompanhamento dessa realidade”.
Para integrantes da sociedade civil, contudo, o compromisso assumido por Roseana “ficou só no papel”. “A secretaria de Direitos Humanos que assumiu agora não está inteirada do assunto. Só com a nossa pressão é que estamos conseguindo rearticular a Coetrae. O combate ao trabalho escravo não é prioridade do governo”, opina Antônio Filho, do Centro de Defesa de Direitos Humanos (CDVDH) de Açailândia (MA), entidade que acolhe vítimas da escravidão contemporânea e presta assessoria jurídica.
A reunião para reativação da Coetrae do Maranhão aconteceu em maio e contou com a participação da equipe do programa “Escravo, nem pensar!” da Repórter Brasil. Depois de quase dois anos, a Sedihc convocou reunião da comissão com a proposta de aprovar novo decreto e regimento interno. Segundo a atual gestão da secretaria, os documentos com atas de reunião e outras coisas se perderam. A secretaria enviou ofício a todos integrantes da Coetrae pedindo que indicassem representantes e suplentes, mas somente quatro responderam – CDVDH, Ministério Público do Trabalho (MPT), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Setres. A titular da Secretaria Estadual de Direitos Humanos não estava presente na reunião, por isso não foi possível votar nenhuma mudança.
Outro governador que deu retorno sobre o cumprimento da Carta-Compromisso foi Beto Richa, do Paraná. Números recentes têm demonstrado o aumento de vítimas da escravidão contemporânea no Estado.
“Temos acompanhado atentamente a questão. Mais recentemente, houve uma migração do trabalho escravo na região Sul do País, das fazendas e áreas rurais para os canteiros de obras da construção civil, sobretudo na região metropolitana de Curitiba”, destaca o governador. Ele afirma estar trabalhando em conjunto com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o MPT e o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil de Curitiba e Região para conter abusos e investigar eventuais denúncias.
Comissões
A possibilidade de criação de uma Coetrae no Paraná está sendo analisada pela Secretaria do Emprego, Trabalho e Promoção Social. “Paralelamente, vamos criar um grupo de trabalho com representantes do governo, do movimento sindical, do Ministério Público, da Assembleia Legislativa e da sociedade para coordenar as ações”, anuncia Beto Richa. “Posso garantir que nosso governo terá tolerância zero com o trabalho escravo. Vamos punir rigorosamente os infratores pelos meios legais, fiscais e administrativos”.
Durante a última reunião realizada no ano passado, os integrantes do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções decidiram por unanimidade transformar o pacto em uma Coetrae. Contudo, o pedido ainda está parado no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (que passou por mudança na coordenação no último mês), da Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo e ainda não foi protocolado na Casa Civil estadual.
“As operações realizadas pelos auditores fiscais do trabalho, pelos procuradores do trabalho e pelo Poder Judiciário, as conclusões da CPI do Trabalho Escravo de 2005 da Câmara dos Vereadores de São Paulo e agora a instalação de uma CPI pela Câmara dos Vereadores de Campinas indicam uma preocupação crescente e apontam para a urgente criação da Coetrae paulista”, defende o auditor fiscal do trabalho Renato Bignami, que coordenou o pacto contra a precarização da mão de obra no setor das confecções e está atuando agora como assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE.
Criada normalmente no âmbito da administração pública estadual, a Coetrae permite a participação de organismos de natureza pública e privada, de governo – federal, estadual e municipal – e da sociedade civil. Por agregar diversos agentes sociais relacionados ao tema, seu funcionamento tende a aumentar o poder de ação do conjunto de atores sociais. “As possibilidades são múltiplas: operações conjuntas entre os diversos órgãos, promoção de estudos, difusão e disseminação de conhecimento, harmonização de procedimentos, elaboração de campanhas e, principalmente, discussão, construção e implementação de um plano e de uma agenda estadual de erradicação do trabalho escravo, à luz dos preceitos do trabalho decente e do respeito aos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador”, explica Renato.
Além disso, a Coetrae facilitaria a construção e implementação de um Plano Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo, integrando uma política e uma agenda estadual para o mesmo fim. “Esses três instrumentos, política, plano e agenda, seriam o marco fundamental para a erradicação do trabalho escravo no Estado de São Paulo e marcariam uma página feliz em benefício dos direitos humanos em nosso estado”, acrescenta o auditor fiscal.
Procurado pela reportagem por meio de sua assessoria de comunicação social, o governador Geraldo Alckmin não se pronunciou.
Do Repórter Brasil