Cresce a demanda dos países mais pobres pela cooperação brasileira

O protagonismo tem um preço
Por Luiz Antonio Cintra, na Carta Capital
 
Assim como o Brasil virou credor do Fundo Monetário Internacional, após décadas na dependência do dinheiro da instituição, no plano diplomático o País ensaia uma mudança de status igualmente notável. Aos poucos, o Estado brasileiro sai da lista dos candidatos à ajuda técnica e financeira para firmar-se como o parceiro “rico” de países africanos, sul e centro-americanos, em projetos bilaterais que visam transferir tecnologia para a segurança alimentar ou o fortalecimento institucional de nações como o Paraguai, Suriname, El Salvador, Quênia, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Não é exagero dizer que, nesse sentido, o Brasil caiu na “boca do povo”, como comenta o diplomata Marco Farani, diretor da Agência Brasileira de Coo-peração (ABC), braço do Itamaraty responsável por mediar os projetos internacionais de colaboração. “Os africanos pedem cada vez mais e nos esforçamos para atender às demandas. Temos conhecimento acumulado e realidades próximas dos países que precisam de ajuda, um diá-logo fácil, natural com eles, ao contrário dos países do Norte, que não conseguem se livrar do estigma do colonialismo.”

A tendência ganhou força na última década, à medida que o País deixou a instabilidade macroeconômica para trás e viu a renda per capita crescer. E foi turbinada, segundo especialistas, pela chamada diplomacia Sul-Sul do governo Lula, que entre outras ações reestruturou a ABC em 2006.

Neste ano, a ABC obteve 52 milhões de reais para suas atividades regulares, gastos, principalmente, na logística necessária para deslocar as missões técnicas, em geral compostas de pesquisadores e profissionais de instituições públicas, destaque para a Embrapa e a Fiocruz, e para a compra de um ou outro equipamento de pequeno porte. Para 2011, o orçamento crescerá consideravelmente, 73% na ponta do lápis, montante ainda assim modesto em termos internacionais.

A dispersão dos projetos de cooperação dificulta saber ao certo o volume investido nessas parcerias. A pedido da ABC, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) finaliza um levantamento inédito para mensurar a cooperação bilateral brasileira, que a partir de então passará a ser atualizado anualmente. “Provavelmente confirmará a impressão de que muito do que o País faz passa despercebido. Mas é certo que se fizéssemos como os EUA, que não usam seu corpo de funcionários públicos e contratam consultores, o valor investido seria dez vezes maior”, diz o diretor da ABC.

A despeito da baixa visibilidade, os números da agência impressionam. Somente no continente africano são cerca de 300 projetos isolados em 36 países, outros 400 em 31 países das Américas, incluindo o Caribe.

O interesse de Lula pelo tema tem muito a ver com dinâmica. A expectativa de o Brasil se tornar uma referência internacional na área esbarra, porém, nas limitações institucionais, muitas vezes responsáveis por dificultar uma ação rápida e eficaz ou mesmo inviabilizar um projeto.

Em mais de uma ocasião, o próprio Lula queixou-se da burocracia. Para doar aviões pequenos a um país africano, por exemplo, é preciso enviar uma emenda ao Congresso. “Não é possível que leve até seis meses para entregar dois aviõezinhos”, chegou a dizer Lula em um encontro com um chefe de Estado africano em busca de apoio.

Em geral, são projetos de transferência de técnicas agrícolas que permitam ao Benim, por exemplo, cultivar algodão de alta produtividade ou a Moçambique produzir medicamentos para enfrentar a Aids. Ou ainda qualificar técnicos e funcionários públicos locais, transferir “tecnologias sociais” e outras formas de políticas públicas, como a que permite gerenciar o Bolsa Família. Solidária pela própria natureza, a política de cooperação, segundo os documentos oficiais, pretende construir parcerias igualitárias e horizontais, sem condicionantes e que respeitem a autonomia e a diferença, além da harmonização de procedimentos, especialmente no caso dos países que compõem o Mercosul.

Engenheiro agrônomo da Embrapa desde 1980, Pedro Arraes Pereira credita a atuação internacional da empresa ao conhecimento adquirido pelos técnicos em viagens ao exterior, para estudar em alguns dos centros de ponta da agricultura. Desde os anos 1980, mais de 1,2 mil profissionais fizeram esse percurso, inclusive Pereira, hoje presidente da Embrapa, que passou quatro anos nos EUA. “A opção pelo treinamento fora criou um dinamismo muito forte na Embrapa, que virou referência internacional em agricultura tropical.”

No Mali, em Benin, no Chade e em Burkina Fasso, pretende-se incrementar a produção de algodão colorido naturalmente, por meio da construção de laboratórios experimentais. No caso de grupo, a iniciativa é uma forma de retribuir ao apoio diplomático dado por esses países na disputa com os EUA na Organização Mundial do Comércio (OMC), na qual o Brasil e seus parceiros saíram vencedores.

Outros exemplos mais próximos entram no escaninho do reforço institucional e na qualificação profissional. Na Bolívia, a Embrapa colabora no desenvolvimento de uma empresa local equivalente, o Instituto de Investigación Agropecuária y Florestal. No Paraguai, em parceria com o Senai, mais de 10 mil cidadãos passaram por treinamento para atuar em construção civil, informática e outros ramos de atividade.

A opção por ampliar a cooperação externa, apesar de bem-vista pelos especialistas, não está isenta de oposição. No Congresso, parlamentares da base ruralista consideram que o Brasil está “entregando o ouro” à concorrência ao transferir sua tecnologia agrícola. Os defensores da atual estratégia do Itamaraty consideram, no entanto, que conforme o caso trata-se justamente do contrário – no etanol, por exemplo, não há como tornar o produto uma commodity global sem que caia a participação relativa do Brasil na produção, hoje em 80%. Outros críticos argumentam que o País deveria se concentrar primeiramente na solução de seus problemas internos para depois mergulhar na cooperação.

No que depender do Itamaraty, cuja orientação Sul-Sul será reforçada pelo governo Dilma Rousseff, a ideia é ganhar musculatura financeira e institucional. O ideal seria aprovar ainda no primeiro semestre um projeto de lei que confira à ABC maior independência administrativa, com corpo próprio de profissionais, estatuto idem e a possibilidade de incluir um braço financeiro para financiar projetos locais, hoje inviável por restrições legais. “A ABC precisa se transformar em uma agência de fato. Hoje ela opera com funcionários do Itamaraty, sempre passíveis de transferência para o exterior, o que prejudica o trabalho”, diz Farani.

Da Carta Capital