Crise na Grécia dá origem a ´mercados de solidariedade´ com moeda alternativa
Críticos radicais de esquerda afirmam que não é possível driblar o sistema capitalista com os mercados alternativos
Comida, roupas e outros objetos podem ser trocados entre moradores afetados pelo desemprego e pobreza crescentes
Na Grécia, os cortes nas aposentadorias e nos salários fazem parte do dia a dia. Durante o período no qual foi apurada esta reportagem, foram despedidas quase 900 pessoas de três grandes empresas, que se somaram aos 2.600 empregados da televisão pública: 3.500 lares que, em três semanas, já não têm uma renda fixa com o qual contar. Estas cifras são apenas a parte mais visível, porém, dia após dia, lojas e comércios são fechados e pessoas são despedidas de empresas privadas pequenas.
No mercado geral de Atenas, uma aposentada que vive no subúrbio diz que faz a longa viagem de ônibus porque a carne e as verduras custam menos. Outro aposentado conta que não sabe mais como se manter. Isso porque sua aposentadoria passou de 1200 para 900 euros, a filha foi demitida e o genro só faz trabalhos ocasionais. Ele então precisa sustentá-los. Histórias como essas se escutam às centenas, basta dar um passeio por qualquer mercado grego.
Frente a essa situação, algumas associações se mobilizaram, criando mercados de solidariedade onde é possível economizar. O primeiro nasceu em Vólos, antiga Argos, uma cidade portuária situada na metade do caminho entre Atenas e Tessalônica.
Angelica e seu marido, Panos, fizeram uma experiência que tem sido copiada pelo município vizinho: um mercado agrícola que contorna a grande distribuição. Tudo nasceu com a chamada “revolta da batata” de 2012. Os produtores tinham grandes quantidades de batatas que ameaçavam deixar apodrecer nos armazéns porque os distribuidores impunham preços absurdos para depois vender essas mesmas batatas nos mercados.
Então, cidadãos e agricultores se organizaram e o preço se reduziu para menos de um terço, com uma boa margem de lucro para todos. Hoje, em Vólos e ao redor da península de Pelion, existe um mercado móvel organizado pelos próprios agricultores, duas vezes por mês. Pela internet, as pessoas podem pedir verduras e outros produtos aos agricultores e depois passar para retirá-los no dia da venda, quando eles se encaminham com o caminhão para a cidade. Inclusive, aqueles que não reservaram têm a opção de comprar, sempre e quando sobrem produtos, algo que não acontece com muita frequência.
No entanto, além de evitar os supermercados, a população de Vólos criou também um mercado alternativo onde se compra sem dinheiro, ou, melhor dito, com uma moeda alternativa e intangível: o TEM. O acrônimo significa “unidade local alternativa” em grego, e a moeda virtual se equipara a um euro.
O mercado de TEM acontece às quartas-feiras e aos sábados, e as compras são feitas exclusivamente com essa moeda, creditada ou debitada em um sistema virtual. Uma das organizadoras, também chamada Angelica, explica a operação: “todo mundo possuiu um nome de usuário nesse sistema , é como uma conta bancária. Se eu vendo algo – eu, por exemplo, vendo livros usados – obtenho alguns TEM, que posso usar para comprar algo, não apenas objetos, que são o foco do mercado, mas também serviços que posso usar em dias e lugares diferentes. Se um salão de cabeleireiro adere ao TEM, posso cortar o cabelo e pagar com a moeda virtual. O mesmo serve para o médico: há bastantes que aceitam ser pagos com TEM, o que representa uma boa economia.”
Giovanni é um italiano que vive em Vólos há 30 anos e é um dos médicos mencionados por Angelica. Um dos fundadores do TEM, ele explica como o método ajuda a economizar. “Claramente nosso sistema não consegue resolver todos os problemas, mas pensamos que pode afetar o gasto mensal em 20-25%, o que, ultimamente, não é pouco. Especialmente em relação a serviços, tais como o médico, o mecânico, o encanador, o fisioterapeuta. Todas essas coisas, com a crise, se transformaram em secundárias, porque impostos, contas e artigos de primeira necessidade abocanham todo o salário mensal e, inclusive, fazem com que ele seja ineficiente”, afirma.
Ainda segundo ele, a economia está no fato de que o TEM não é uma moeda real, é só um sistema virtual que regula o comércio. Portanto, não é tributável. “O Tesouro já realizou várias checagens, mas não foram detectadas irregularidades. Além disso, que podem dizer se um paciente me paga com ovos e decido aceitá-los? Nada. O TEM é mais ou menos assim, mas permite ir além da troca, porque o valor que eu produzo por um serviço ou uma venda é compensado com outra coisa que talvez não necessite naquele instante: posso capitalizá-lo e gastá-lo em outro momento, com uma terceira pessoa, com algo de que realmente necessite”.
Problemas
É claro que não é tudo cor-de-rosa. No TEM, como em qualquer outra economia, há quem tenha tentado se aproveitar dos demais. Giovanni conta que algumas pessoas levaram lixo, alimento podre, coisas que não podem ser vendidas, e tentaram passá-las adiante com o TEM. Quando elas são identificadas, recebem um aviso e se continuam, são excluídas do sistema.
Outro problema surgiu quando algumas pessoas não devolveram o crédito inicial. Para se assegurar de que quem aderisse se sentisse imediatamente parte da comunidade de intercâmbio, se outorgava um crédito inicial de 300 TEM, que poderia ser gasto em seguida. O crédito era devolvido através da venda de bens ou serviços avaliados em outros tantos TEM. “Hoje o reduzimos a 150 TEM, para nos proteger”, diz Giovanni.
O sistema do mercado sem moeda, portanto, é algo a ser melhorado com o tempo. Entretanto, já desempenha uma função muito útil, fala Angelica. “No começo, no mercado havia quase que somente produtos de segunda mão ou coisas caseiras, de bolos a blusas. Agora, no entanto, vários distribuidores estão se juntando ao TEM, que fecharam seu negócio. Quem fecha, muitas vezes tem um monte de mercadorias sem vender e não sabe oque fazer com elas. São produtos novos, sem abrir, que podem ser adquiridos com TEM. Não é uma solução, mas ao menos evitamos desperdícios e estas pessoas podem ter uma nova pequena fonte de renda”.
Outros mercados
A ideia dos mercados alternativos se propagou rapidamente pela Grécia. Há seis realidades estruturadas como a de Vólos, incluindo um sistema de trocas em Patrasso e outra alternativa de moeda virtual em Calamária, ao sul de Tessalônica. Chama-se Kinò, que significa “povo”. Um dos seus criadores, Yannis, um senhor corpulento com um sorriso jovial, me acompanha pelo mercado que se organiza semanalmente e explica o sistema. Também nesse caso, as pessoas trocam tanto bens como serviços por meio de uma conta bancária virtual e um Kinò se equipara a um euro.
“Estamos falando com os de Vólos e outros mercados da Grécia”, conta Militsa, uma senhora que registra as compras da comunidade de trocas. “Trocamos conselhos e práticas, e, às vezes, alguns de nós conseguimos nos encontrar pessoalmente. Existe a ideia de equiparar nossas ‘unidades alternativas’, que são sempre equiparadas ao euro. Seria um grande passo adiante. Significaria que com o Kinò de Calamária poderíamos comprar bens e serviços também em Vólos e em outras cidades da Grécia e vice-versa. Mas não é tão simples porque cada comunidade tem seus sistemas e sua lógica e nem sempre todos coincidem”.
Também há a questão da confiança, que inclusive em um mercado pequeno como este segue sendo um importante nó da economia, como explicam especialistas. No momento, são comunidades que se autorregulam porque se conhecem, podem olhar um na cara do outro. Não está claro se, no futuro, se o sistema crescesse, o mesmo valeria. E depois está o problema da relação com as autoridades: há os que acreditam que, se as moedas virtuais se confederarem, deixariam de ser realidades locais e passariam a ser nacionais, e então não teriam a mesma paz que têm agora.
Críticas
Entretanto, há quem critique essas formas de comércio alternativo. Os partidos radicais de esquerda afirmam que não é possível driblar o sistema capitalista com seus próprios mecanismos. Mas, mesmo aqueles simpatizantes do Syriza [Coligação da Esquerda Radical], o primeiro partido da oposição, cujos militantes também organizam mercados alternativos, explicam que essas atividades não são totalmente resolutivas: “O verdadeiro problema é que requerem esforços contínuos, não são sistemas que podem funcionar de um modo automático: se as pessoas deixam de participar, eles deixam de existir”.
Quem diz isso é Argiris Panagopoulos, jornalista do diário Avgi, líder da oposição. Ele participa de vários comitês de trocas em Atenas: na capital, que conta com mais de quatro milhões de habitantes. “O que realmente mudou, como atitude, é a mentalidade do lixo. Antes se jogava fora muito mais, hoje você encontra materiais que podem ser revendidos, especialmente ferro. Inclusive, nos mercados, trocam-se se coisas que são conservadas porque podem ser úteis aos demais: medicamentos, comida e roupa. É sem dúvida útil, mas não pode ser a solução da crise”.
Uma coisa interessante, mencionada por Panagopoulos, é que essas experiências funcionam somente se realmente são uma expressão do território. “Eu mesmo participei de várias iniciativas do Syriza, mas elas morreram quase imediatamente. O fato é que, hoje, na Grécia, se as pessoas sentem que os partidos estão no meio de alguma coisa, deixam de confiar. Em outras situações, nas quais militantes do Syriza ajudaram e apoiaram as iniciativas nascidas diretamente no território, as coisas foram muito melhores”.
Isso é, segundo Panagopoulos, um sinal da brecha que existe entre essas pessoas e a classe política. Mas também é um sinal de que hoje, na Grécia, as organizações políticas, se realmente quiserem ser populares, devem voltar a se colocar no meio do povo, que nunca antes, como agora, se sentiu enganado por quem lhes representou, tanto em casa como no exterior.
Da Rede Brasil Atual