Crônica|A fila do Juízo Final

Por José Roberto Torero

Grossas nuvens se formam e sopra um vento gelado em mais um dia dos
trabalhos do Juízo Final. Atarantados, os serafins tentam
pôr em ordem, na imensa fila que reúne toda a
humanidade,
desde Shakespeare até um australopithecus, desde Newton
até um cromagnon, desde Aristóteles
até Alexandre
Frota. Lá pelo meio da fila, usando um terno bem cortado, um
velho senhor está logo atrás de um rapaz
magricelo que
possui um ar um tanto misterioso (talvez por usar chapéu,
óculos escuros e luvas). O velhor senhor cofia seu bigode
pintado de preto e puxa assunto:

– Friozinho, não? E dizer que ontem estava
tão quente!

– Por mim, tudo bem. Estou acostumado a mudanças.

– Eu também, de certo modo.

– Como assim?

– Eu fui um político.

– E eu um astro pop.

– Que interessante. Acho que temos algumas coisas em comum.

– Sim, falamos para as multidões e temos de nos
preocupar com a aparência.

Querendo parecer simpático, o velho senhor elegante resolve
fazer uma gentileza: compra duas canecas de chope de um dos querubins
que voam sobre a fila com pequenos barris pendurados a tiracolo.

– O meu com bastante colarinho. E você, rapaz, como
vai querer o seu?

– Prefiro um garotinho, senhor.

Eles brindam à amizade e continuam a conversa:

– Mas você falava em mudanças, meu
rapaz, e esse
é um tema que me agrada. Sou inteiramente a favor delas.
Mudanças renovam o espírito e ampliam os
horizontes.

– Não são muitos os que apreciam esse
tipo de atitude.

– São uns desprovidos de
imaginação.

– Essa gente tem medo de novas experiências.

– E pior: chamam isso de coerência.

– Quem quer ser coerente?

– Eu, por exemplo, no começo da carreira fui de
oposição.

– E eu tinha cabelo pixaim.

– Depois fui para a situação.

– Meu nariz já foi esparramado.

– Eu, depois que cheguei ao poder, nunca mais saí
de
lá. Mudei de opinião, de partido e de amigos, mas
nunca
saí do topo.

– Já eu mudei até de cor. E sempre
continuei por cima.

– É como diz aquela frase do Lampedusa:
“É
preciso que as coisas mudem para que tudo fique como
está”.

– Já eu prefiro “só quem
não tem
criatividade é que não muda de
idéia”.

– Creio que é hora de nos apresentarmos. Enquanto
eu era vivo, me chamavam de José Sarney.

– Muito prazer, Jackson. Michael Jackson.

– Saiba, caro Jackson, que estou feliz por ter encontrado
alguém que compartilha das minhas idéias.

– E eu também, senhor Sarney. Nós, os
mutantes,
somos uns incompreendidos. Sabe, posso até ser condenado a
arder
no fogo do inferno, mas, no dia do julgamento, vou dizer em alto e bom
tom que o comportamento das pessoas é uma coisa de foro
íntimo e não deve ser julgado pelas expectativas
conservadoras da moral judaico-cristã. As
crianças, por
exemplo…

– Que é que tem as crianças?

– Quem falou em crianças?

– Você.

– Eu não, Jesus. O senhor não conhece
aquele
versículo: “V