Cultura|O talento do povo

Programa fertiliza a arte popular, mas esbarra na burocracia

Programa é avaliado por ativistas culturais como capaz de revolucionar o potencial artístico popular. Mas precisa vencer a burocracia para sobreviver

Por Breno Castro Alves e Eduardo Carvalho

Em Arcoverde (PE), limite entre agreste e sertão, um grupo de teatro ocupou em 2001 uma estação ferroviária abandonada com o propósito de torná-la pólo de cultura. Em 2004, o grupo passou a ser reconhecido pelo Ministério da Cultura, a receber recursos, e hoje toca a Estação Arcoverde. O complexo é formado por três prédios que pertenciam à Rede Ferroviária Federal, que foi gradualmente desativada nas últimas décadas e extinta em definitivo em janeiro de 2007. Seus prédios se degradaram e serviam de ponto de venda de drogas. Dias antes da tomada, o grupo “vazou” a informação. A prefeitura lacrou todas as entradas e saídas. Os cinco atores do grupo ocupante inicial, então, escalaram a parede, entraram pelo vão destelhado de um dos prédios e, a golpes de marreta, derrubaram a barreira de concreto e tijolos. Lá fora eram esperados por outros ativistas e um carro-pipa. Com a tomada veio a revitalização. Os salões escolhidos são cubos amplos e simétricos, separados então por apenas uma cortina.

Um deles era o espaço de trabalho, onde ensaiavam, apresentavam espetáculos e realizavam oficinas com a comunidade. O outro servia de habitação, divido por paredes conceituais entre as áreas de dormitório, higiene, cozinha e sala de estar, onde recebiam visitantes. Nesse espaço os atores seguiram, pelo menos por um período, a proposta do Teatro da Crueldade, de Antonin Artaud. O teatrólogo francês do início do século 20 formulou uma proposta que prima pelo rigor no processo de montagem dos espetáculos, desconstruindo a linguagem clássica teatral para reformulá-la com atuação menos dependente do texto, uma visão ritual do teatro, quase uma religião. E ritualizar processos foi o que os atores fizeram durante o primeiro ano de ocupação. Tinham hora rígida para dormir, para acordar. Todos tomavam banho ao mesmo tempo, cozinhavam e comiam em conjunto e ensaiavam em uníssono. “Éramos teatro 24 horas. Não havia momento em que não estivéssemos vivendo um espetáculo”, afirma Henry Pereira, único dos ocupantes iniciais que permanece até hoje na Estação.

A ocupação foi planejada para ser um processo permanente e sustentável. Porém, mais ou menos no mesmo momento em que conseguiram o CNPJ da Associação Estação da Cultura, ocorreu a diáspora. Henry, último a deixar o prédio, já estava em Recife quando recebeu uma ligação de um dos jovens que haviam sido treinados pelo grupo em suas oficinas. O rapaz o intimou a voltar, informando que havia formado novo grupo na comunidade e precisava de orientação. Ele retornou e, em junho de 2003, depois de não terem sido incluídos na programação oficial do São João da cidade, ocuparam a festa invocando Coeviacá.

O índio incendiário, Coeviacá, é a persona de ataque que os membros da Estação assumem em seus momentos mais combativos. Um mês após a ocupação, em uma festa de final de ano, fazia campanha extra-oficial de reeleição a então prefeita Rosa Barros (PFL). Em protesto contra a administração municipal, que sempre se mobilizou contra a Estação, os cinco atores e mais dois apoiadores invocaram Coeviacá e, durante discurso de Rosa, intercederam com pernas de pau, malabares e tochas. O contato com a cultura indígena, porém, vai mais fundo. Enquanto a ocupação ainda engatinhava e sofria tentativas de ataques – a prefeitura não aceitava ceder o espaço a um grupo cultural independente -, os índios xucurus, habitantes da vizinha cidade de Pesqueira, ofereceram apoio e foram os primeiros a reconhecer a ocupação. Em 2003, foi realizado dentro da Estação o encontro da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).

Em novembro do mesmo ano foi a vez de o Ministério da Cultura (MinC) oferecer reconhecimento nacional à ocupação, aprovando-a como s