Depois de 24 anos e má conservação, ossadas de Perus irão a perícia

Ossadas retiradas de valas clandestinas devem ser periciadas para ajudar a esclarecer verdades sobre a ditadura

Número de vítimas pode ser superior a 1.049, dizem técnicos. Eles trabalham com lista de 41 desaparecidos políticos. Equipe científica ficará em centro da Unifesp, e processo pode levar até dois anos

Desta vez, o trabalho será feito, garantem autoridades e esperam familiares, a respeito da identificação de 1.049 ossadas encontradas em 1990 em uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona noroeste de São Paulo. Uma equipe de aproximadamente 40 pessoas, entre arqueólogos, antropólogos, médicos legistas, odontolegistas e geneticistas, será responsável pela análise do material. Nos próximos dias, as caixas com as ossadas sairão do cemitério do Araçá, também na capital, para um laboratório da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na Vila Mariana, na zona sul, onde será instalado o Centro de Arqueologia e Antropologia Forense. A análise deve começar em outubro. O cruzamento de informações resultou em uma lista de 41 nomes de desaparecidos políticos cujos restos mortais podem estar entre as ossadas de Perus.

Os técnicos evitam fixar prazos, mas o processo poderá levar até dois anos. Em boa parte, isso dependerá do estado dos ossos. Exposição feita ontem (4), na Assembleia Legislativa paulista, demonstrou que a conservação foi inadequada, o que para observadores e militantes de direitos humanos foi mais uma demonstração de descaso do Estado.

Imagens exibidas durante audiência pública no Parlamento, feitas anos depois da descoberta da vala, mostram caixas empilhadas no chão, com cadeiras jogadas em cima, caixas de papelão com crânios sem identificação. Técnicos falam em má conservação e exposição a umidade e fungos, além de documentação incompleta.

A equipe responsável pelos trabalhos, a partir da segunda quinzena deste mês, é formada por sete instituições, incluindo técnicos brasileiros, argentinos e peruanos. E é resultado de articulações envolvendo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, por meio da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo e a Unifesp, atendendo a antigos pleitos de familiares. Os restos mortais encontrados em Perus passaram pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e desde 2002 se encontram no Ossário Geral do Araçá.

“Essas pessoas desafiaram as estruturas internas de suas instituições”, afirmou o secretário municipal de Direitos Humanos, Rogério Sottili, que falou em um “arranjo complexo” para viabilizar a parceria. “Esperamos que possamos corresponder às expectativas que são novamente alimentadas com esse recomeço.” Segundo ele, a má condição das ossadas, decorrente de “negligência”, tornam o trabalho mais difícil. Mas é possível esperar, acrescentou, “um processo sério e de absoluto rigor científico”.

Para o secretário, “o direito à memória e a verdade ficou abandonado pela gestão municipal durante muitos anos”. Considerado prioritário, o caso Perus ocorreu “certamente com envolvimento e anuência de gestores municipais”. A prefeitura instalará a sua comissão da verdade no próximo dia 25.

Presidente da comissão estadual – que ontem realizou a sua 140ª audiência pública –, o deputado Adriano Diogo (PT) listou uma série de interrogações que o caso Perus suscita. “Torturadores não foram punidos, documentos não foram devolvidos, desapareceram de novo. Por que o prefeito da época, o senhor Paulo Maluf, autorizou a abertura desta vala? Qual foi a cadeia de comando que levou para lá tanta gente?”, indagou. “As valas comuns não acabaram. A ditadura deixou marcas, a tortura, a militarização da polícia.”

Para o presidente da Comissão de Anistia e secretário nacional da Justiça, Paulo Abrão, o início efetivo do trabalho de perícia representa um marco para o Estado, uma mudança de padrão em relação a populações vulneráveis. “Ninguém sabe o que vai sair. São mais de mil histórias. É um grande passo à frente”, diz Abrão, esperando “resultados concretos na busca dessas responsabilidades”.

Caixas

A chamada fase antermortem, de levantamento de dados, está bastante adiantada, segundo o perito médico-legista Samuel Ferreira, da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Ministério da Justiça), coordenador do grupo de trabalho científico. O objetivo, além da identificação, é “quando possível” determinar as causas das mortes. “Vai depender muito das condições dos restos mortais”, observa. Segundo ele, é difícil falar em prazos nessa situação, embora haja uma estimativa inicial de 18 a 24 meses. “A gente tem data para começar. São 1.049 caixas. Só quando a gente abrir (as caixas).” Por enquanto, a equipe, que começou a se reunir em julho, tem se debruçado na análise de 20 livros de registros do cemitério de Perus, relativos ao período 1971-1980, de 5.500 documentos de uma comissão parlamentar de inquérito e 34 horas de gravações em vídeo feitas em 1990.

Não há, inclusive, certeza quanto ao número de pessoas enterradas naquele local. Podem ser mais que 1.049.  “A gente não sabe com exatidão quantas pessoas existem nas 1.049 caixas”, observa o arqueólogo Rafael Souza. Havia, por exemplo, caixas com dois crânios. Além de desaparecidos políticos, a suspeita é de que foram enterrados, na mesma vala, nos anos 1970, indigentes e vítimas de meningite – o noticiário sobre uma epidemia da doença foi vetado pela ditadura.

Há também um trabalho de abordagem dos familiares. Durante a exposição, os técnicos observaram que a relação do Estado com as famílias é “tênue” e precisa ser reconstituída. Por enquanto, 181 pessoas de 119 famílias doaram material para ajudar na análise.

Professora titular da Unifesp, a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, destacou a criação do primeiro Centro de Antropologia e Arqueologia Forense do Brasil, também resultado de parceria entre a universidade, as secretarias de Direitos Humanos da Presidência da República e da prefeitura paulistana e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, além da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, que tem como tarefa inicial o caso Perus. “Este ato me faz pensar na etimologia da frase ´para que não se repita´. A impunidade dos torturadores, dos assassinos, reflete sem dúvida nenhuma na impunidade de toda a polícia brasileira”, afirmou. A reitora da Unifesp, Soraya Smaili, acredita que a criação do Centro de Antropologia tem o caso Perus como desafio, mas pode deixar um legado para o país.

A secretária de Direitos Humanos da Presidência, Ideli Salvatti, destacou a perseverança dos familiares e a coragem da prefeita de São Paulo na época da abertura da vala, Luiza Erundina, atual deputada federal. “É um trabalho (a perícia) para que acabemos com a política de extermínio.” Segundo ela, a “máquina de extermínio” brasileira ainda faz vítimas. “Enfim, vai começar”, disse Ideli, referindo-se ao início dos trabalhos da perícia.

Emocionada, ela recitou os versos da canção Pesadelo (Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós), homenageando o ex-preso político Ivan Seixas (que fazia aniversário ontem), presidente do Conselho Especial de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e assessor da comissão estadual da Verdade. A música foi cantada para ele na prisão.

Gravada em 1972 pelo grupo MPB-4 e definida por Pinheiro como um “canto de guerra”, Pesadelo escapou da censura virou marca da contestação à ditadura: “Você corta um verso/ Eu escrevo outro/ Você me prende vivo/ Eu escapo morto/ De repente, olha eu de novo/ Perturbando a paz, exigindo o troco”.

Para Ivan Seixas, o mau estado das ossadas reflete, além da falta de interesse das autoridades então responsáveis, “uma intenção de destruição” do material. “O problema é que a gente ficou na mão de uma mentira”, afirmou, referindo ao médico legista Fortunato Badan Palhares, da Unicamp. Agora, ele acredita que os trabalhos de fato poderão chegar a uma conclusão. “Hoje tem vontade política.”

Arquivos

Em nome dos familiares de desaparecidos, Suzana Lisboa lembrou ter conseguido identificar seu companheiro, Luiz Eurico, no cemitério de Perus (mas não na vala clandestina). “Não posso deixar de pensar em tantas mães que gostariam de ter enterrado seus filhos. Tenho esperança de que essa investigação vai seguir em frente”, afirmou. “Queremos que os arquivos do Instituto Médico Legal e da Polícia Técnica sejam imediatamente abertos”, cobrou. “E queremos que os arquivos das Forças Armadas sejam abertos.”

Suzana também destacou o nome de Antônio Pires Eustáquio, administrador do cemitério de Perus de 1976 a 1992. “Seu Toninho nos recebeu em plena ditadura e nos abriu os livros e os segredos daquele cemitério.”

“Eu não tive medo”, disse Antônio, ou Toninho, que devolveu a homenagem às famílias, fazendo uma analogia com a história dos beija-flores que durante um incêndio na floresta “fazem a sua parte” levando um pouco da água para tentar apagar o fogo. O ex-administrador definiu os familiares como “os beija-flores da democracia brasileira e da justiça que ainda precisa ser terminada”.

Da Rede Brasil Atual