Discurso de Dilma na ONU traduz a Nova Política Externa
Dilma Rousseff durante discurso na ONU
O discurso de Dilma Rousseff na Assembleia Geral da ONU é revelador do novo paradigma, ativo e altivo, da política externa brasileira
Um discurso não é pouco, como acreditam muitos. E um discurso brasileiro na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (AGONU)… de pouco não tem nada. Diz-se naquele lócus, naquele discurso, nas entrelinhas ou não, quem somos, o que queremos, o que pensamos. Os tempos e contratempos da sinfonia são rigorosamente debatidos entre muitos – diplomatas e políticos – a fim de se chegar a uma peça-final. Cuida-se notar, para uma correta dimensão de sua relevância, que até o Presidente Lula, conhecido por não se ater aos discursos para ele preparados, leu e ateve-se, sempre, àquela peça produzida. Celso Amorim anunciou que estes discursos são “documentos cuidadosamente trabalhados, seja por seu valor externo, como apresentação das posições do Brasil, seja como indicação para a opinião pública brasileira sobre os rumos da nossa ação internacional.” Ao fim e ao cabo, para recorrer a outra citação, Luiz Filipe Corrêa sustentou: “Em política externa, discurso e ação na verdade se complementam e se sobrepõem. Frequentemente o discurso é a ação e a ação é o discurso.” A importância se eleva tendo em vista que ao Brasil cabe a honra e a responsabilidade de inaugurar a sessão da Assembleia, fato que remonta à IV Sessão da AGONU de 1949.
O discurso brasileiro enquanto tradução de uma Nova Política Externa
Fait accompli, a Nova Política Externa brasileira, altiva e ativa nos dizeres do chanceler Amorim, torna-se cada dia mais duradoura e reconhecível: 12 anos de uma nova política externa reconhecida pelos líderes mundiais mais expressivos, analistas e mídias internacionais (com exceção de praxe da nossa mídia nativa colonizada e colonial).
As novas alianças políticas internacionais (BRICS, IBAS, G-20), o fortalecimento da integração (a exemplo da criação da UNASUL e da CELAC), o protagonismo do Brasil em temas que vão desde a crise financeira internacional até a governança da internet, passando por assuntos de segurança, expressam um esforço e uma habilidade para a criação e a prática desta nova política. Neste sentido, o discurso de Dilma Rousseff, que ocorreu próximo ao término de três mandatos de governos petistas (com suas idiossincrasias e alianças, por óbvio) coroa um novo período.
Em primeiro lugar pode-se ressaltar no discurso da presidenta a coroação do princípio da solidariedade. Não difusa e idílica, mas prática e possível. Num exame sobre os discursos da época de Fernando Henrique e Lula contata-se o uso do termo “solidariedade” 6 vezes naquele período e 12 vezes no último. Nos discursos de Dilma, de 2011 a 2014, o termo apareceu 7 vezes.
Destaque para que duas vezes FHC e seu chanceler Celso Lafer (uma vez cada) o utilizaram em referência aos EUA, por conta do ataque às torres gêmeas. Já Lula, Amorim e Dilma, aplicaram-no mais diretamente: à questão do combate à fome, à cooperação internacional, ao Haiti, entre outros.
No discurso de 2014 a presidenta colocou-o ao lado de outros princípio tradicionais da política externa brasileira, fato que deve-se atentar com certa acuidade. Disse Dilma que “a grande transformação que estamos empenhados” exigiu do Brasil “uma ação na cena global marcada pelo multilateralismo, pelo respeito ao Direito Internacional, pela busca da paz e pela prática da solidariedade.”
O Brasil, portanto, nestes últimos 12 anos, procurou demonstrar ao mundo e a si mesmo, que a prática da solidariedade é possível e serve aos interesses nacionais e humanistas. A solidariedade, um principio infelizmente tão escamoteado pelo status quo econômico-político, possibilitou, por exemplo, que o Brasil tenha saído do “mapa da fome”, nas palavras da Presidenta na Assembleia Geral. O combate à pobreza e à miséria, em âmbito nacional e global, a cooperação internacional, a integração regional, a busca por mecanismos eficientes de prevenção e combate à insegurança internacional, são metas inspiradas por aquele princípio.
Outro ponto que merece menção foi o chamado à criação de marcos regulatórios para a governança da internet. Dilma já havia se referido à questão no ano anterior e, desta vez, demonstrou sua urgência e pertinência. Tem-se aqui outro exemplo de uma política altiva e ativa: por um lado, o País não se calou – como era de se esperar em governos anteriores – diante da violação de padrões de conduta internacional promovida pela grande potência mundial. Por outro, o governo deu passos significativos para promover uma solução à questão, a exemplo “da iniciativa do Brasil, da Reunião Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet – a NETmundial”, que ocorreu em abril deste ano, como sustentou a presidenta.
Quanto ao papel dos países em desenvolvimento na arquitetura de poder internacional a postura de Lula e Dilma são de igual forma destacáveis. Sobre reforma da ONU, em especial sobre o Conselho de Segurança, Lula diria em 2005 que “Não é admissível que o Conselho continue a operar com um claro déficit de transparência e representatividade”. Em seu discurso de 2014, Dilma afirmou em referência ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional: “É inaceitável a demora na ampliação do poder de voto dos países em desenvolvimento nessas instituições.” Novamente, a altivez é seguida e complementada pela atividade: em 2004 criava-se o G4, composto pelo Brasil, Alemanha, Japão e Índia. No governo Dilma, em 2013, o Banco do Sul passou a operar em Caracas e, em 2014, na Cúpula dos BRICS lançou-se o Banco dos BRICS. Ambos empreendimentos que surgem como alternativas ao FMI e Banco Mundial.
Por fim, apareceu novamente no discurso da presidenta a preocupação com as intervenções humanitárias ou operações de paz. Neste sentido, Dilma volta a fazer referência ao seu discurso, no mesmo lócus, de 2011, quando inovou ao trazer a noção/ideia da responsabilidade ao proteger. Em 2014 Dilma usou palavras fortes: “O uso da força é incapaz de eliminar as causas profundas dos conflitos (…). A cada intervenção militar não caminhamos para a Paz, mas, sim, assistimos ao acirramento desses conflitos.” Verifica-se uma postura corajosa e que procura trazer à tona um dilema contemporâneo de dimensões significativas no cenário da segurança internacional: afinal, as intervenções humanitárias estão cumprindo seus propósitos? A questão, polêmica e aguda, incita à reflexão e discussão sobre novas formas de resolução de conflitos.
Ao fim e ao cabo, o discurso da presidenta de 2014, em termos de Política Internacional e Política Externa, seguiu a métrica de um protagonismo responsável, promovendo e consolidando uma nova política externa brasileira que, oxalá, continuemos observando nos próximos anos.
Da Carta Capital