Do cardápio à Cipa, no ABC tudo passa pelos comitês de fábrica

Sérgio Nobre: abrir mais espaços para negociação. Foto: Rossana Lana / SMABC

Na fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, há uma rotina que, se não supera em intensidade a produção diária de 488 veículos (55 carros novos por hora), se repete de segunda a sexta-feira com a mesma dinâmica: as negociações entre sindicalistas e gerentes da montadora. Filiados ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no entanto, os sindicalistas que negociam a todo momento com a Ford não respondem ao sindicato, o que torna mais ágil a tomada de decisões e a solução de problemas internos, evitando, também, que os ânimos dos metalúrgicos se acirrem à espera de uma negociação do sindicato. Trata-se de um aparato institucional denominado Comitê Sindical de Empresa (CSE), evolução das antigas “comissões de fábrica”, que estão instalados em 89 fábricas do ABC paulista.

Desde o início de março, o sindicato organiza pequenas comitivas a diferentes comitês sindicais, de forma a apresentar o modelo a sindicalistas de outras regiões e setores, parlamentares e mesmo empresários. O modelo dos comitês sindicais, acertado entre empresas e o sindicato, será levado ao governo federal ainda neste mês, sob a forma de um anteprojeto de lei que o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC tem pronto, que torna os comitês não só legais perante a CLT, mas também um modelo “exportável” para o resto do país.

O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que representa 105 mil trabalhadores, praticamente não mantém contato com as 89 fábricas onde há um comitê. De acordo com o seu estatuto e os acordos assinados com as fábricas que contam com os comitês, as relações trabalhistas são todas estabelecidas entre os comitês e as empresas.

“Não consigo passar uma hora sem conversar com alguém do comitê, não deixamos chegar nada na direção da empresa ou do sindicato”, diz Rose Tavares, supervisora de Relações Trabalhistas da Ford. “Como ficamos na fábrica e conhecemos todo mundo, tanto os metalúrgicos quanto o pessoal da área administrativa, resolvemos tudo mais rapidamente”, diz Paulo Cayres, um dos 25 integrantes do comitê sindical na Ford.

É esse modelo que o sindicato pretende levar para todo o país. Projeto de lei será encaminhado a Brasília ainda em abril, por meio do Conselho de Relações do Trabalho (CRT), vinculado ao Ministério do Trabalho, de forma a agilizar as negociações com o governo Dilma Rousseff. O sindicato conta com um trunfo: José Luiz Feijóo, ex-presidente da entidade, acaba de assumir o cargo de assessor pessoal de Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência da República, e homem forte na relação entre Dilma e movimento sindical.

Pelo projeto, o sindicato espera tornar mais flexível a legislação trabalhista, de forma a legalizar acordos individuais e evitar que procuradores do Ministério Público (MP) revertam decisões fechadas entre os comitês e as empresas. O projeto é fortemente apoiado pelas empresas, mas encontra barreiras em outros vertentes sindicais – a segunda maior central do país, a Força Sindical, a qual o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo é filiado, é contra, por avaliar que os comitês “enfraquecem” o papel do sindicato.

“Se ficarmos presos à CLT, travaremos uma série de avanços que são fundamentais para os trabalhadores e para as empresas”, diz Sergio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. “O espaço para negociação no Brasil é quase inexistente, tudo é engessado pela legislação”, diz.

Casos de decisões judiciais que reverteram acordos entre os comitês sindicais e as empresas não faltam, dizem sindicato e empresas. No ano passado, por exemplo, uma decisão do MP reverteu o acordo coletivo da Mercedes-Benz, que reduzira o horário de almoço dos metalúrgicos em 15 minutos, que, em troca, terminavam o expediente mais cedo. O acordo, selado pelo comitê sindical na Mercedes após assembleia com os trabalhadores, e assinado pelas duas partes, deixou de vigorar. Da mesma forma, a cláusula que ampliava o mandato dos eleitos para a Cipa de um para dois anos, também foi revista pela Justiça. “Poxa, se decidimos dentro da fábrica, em comum acordo entre as partes, porque um terceiro [a Justiça] precisa se intrometer?”, pergunta José Luiz Camargo, diretor financeiro da IGP Latarias Automotivas.

Fonte: Valor Econômico

Projeto de lei torna a legislação mais flexível, para legalizar os acordos fechados nas fábricas
O modelo dos comitês sindicais, criado há dez anos, partiu das extintas “comissões de fábrica”, instituídas pelas montadoras em São Bernardo do Campo na década de 1980, de forma a dirimir conflitos e greves. A primeira comissão de fábrica nasceu na Ford em julho de 1981, depois que a última greve organizada por Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do sindicato, mobilizou os quase dez mil operários da companhia, que demitira 450 funcionários em maio.

De forma a debelar o movimento, a montadora americana criou a comissão de fábrica, que passou a funcionar como canal de demandas entre os funcionários e a direção da empresa. Nos três anos seguintes, Mercedes, Scania e Volkswagen também criaram suas respectivas comissões de fábrica.

“Passamos a discutir tudo”, diz Eliseu Prata, destacado pela Mercedes, em 1985, para comandar as negociações com a comissão de fábrica recém-criada. “Negociamos dos pratos preferidos no almoço a exaustores nos banheiros, passando por intrigas entre funcionários e um gerente mais durão até o número de cervejas que daríamos como brinde para o churrasco de fim de ano”, diz.

Para João Passos, metalúrgico aposentado conhecido por Bagaço, “os peões passaram a nos ver como heróis, porque das negociações com a empresa saíram pequenas conquistas que mudaram a rotina”. Bagaço foi da primeira comissão da Ford, e trabalhou ao lado de Feijóo, cujo currículo começou na comissão de fábrica e chegou à assessoria de Gilberto Carvalho, na Presidência, tendo passado pela presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernado do Campo e pela vice-presidência da Central Única dos Trabalhadores (CUT), ao qual o sindicato é filiado.

Segundo Feijóo, o CSE é a maior conquista da história do sindicato e uma das maiores do movimento sindical. “O comitê não depende da decisão da empresa, mas de um acordo entre as partes, diferente das antigas comissões de fábrica. Serviu para mostrar à categoria que as greves pertencem a um tempo em que o governo proibia sindicatos e as empresas não conversavam”, afirma.

Além das cinco montadoras, outras 84 fábricas de autopeças contam com CSE instaladas. Entre elas está a IGP Latarias Automotivas, pequena fabricante de partes e peças de reposição, que neste ano começa a fornecer material às montadoras. Quem explica como está sendo trabalhada a mudança de perfil não é Renato Cicarelli, presidente da companhia, mas José Pedro dos Santos, o Marrom, estoquista da IGP e membro do comitê: “Antes competíamos com o desmanche, agora entramos em um mercado muito mais competitivo, que é o fornecimento às montadoras, então diretores e empregados precisam estar preparados para o maior nível de exigência e competição a que seremos expostos”, diz.

Marrom avalia que iniciativas como a instalação de uma biblioteca e de uma sala com mesas de bilhar têm sido “fundamentais” para melhorar o ambiente de trabalho, e com isso a produtividade dos trabalhadores. A IGP também selou uma parceria com o sindicato e a Secretaria de Educação de Diadema, onde fica a fábrica, que permite aos funcionários cursarem o ensino fundamental nos fins de semana. De acordo com dados levantados pelo sindicato em pareceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), apenas 9,6% dos 105 mil metalúrgicos têm ensino fundamental incompleto – eram 48% em 1994.

“Com um comitê funcionando dentro da empresa, casos horrendos como o dos trabalhadores nas obras de Jirau e Santo Antônio não aconteceriam, porque haveria uma fiscalização e um espaço instituído de negociação direta e intermitente”, diz Nobre. O projeto que o sindicato encaminhará aos técnicos do governo federal prevê a criação de um selo de certificação, que será dado às empresas e sindicatos “habilitados” a criar um comitê. Às empresas será exigido um posicionamento “pró-sindical”, isto é, a companhia não poderá discriminar ou demitir funcionários sindicalizados. Aos sindicatos, por outro lado, será observada sua “representatividade” perante a categoria. O Valor apurou que o Ministério do Trabalho não se encarregará de emitir os certificados.

Sindicatos de esquerda pregam o conflito  
Quando acompanhou o 3º Congresso da Central Única dos Trabalhadores (CUT), realizado em 1988, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues anotou em seu livro “CUT: Os militantes e a ideologia” que todas as teses apresentadas pelos diferentes dirigentes sindicais filiados à central mantinham a concepção do marxismo e do comunismo, ou seja, “da divisão da sociedade em dois campos opostos, o dos exploradores e o dos explorados”. Os termos, abandonados pela CUT há muitos anos, ainda são usados como bordões por correntes de esquerda.

À frente da CUT no mundo político estava o Partido dos Trabalhadores (PT) e, do lado sindical, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, que fora presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, fundador do PT, e que nos anos 80 era liderado por Jair Meneguelli, também primeiro presidente da CUT. Centro das famosas “greves do ABC” entre 1979 e 1982, e do “movimento dos golas vermelhas”, que parou a Ford em 1990, o sindicato passou a encampar a bandeira das negociações com os antes mal vistos patrões nos últimos anos.

Hoje, a Ford distribui aos funcionários um folheto onde está escrito: “Sindicato e companhia [estão] trabalhando juntos em um ambiente saudável, estável e de progresso, que atenda integralmente as estratégias de relações trabalhistas e do negócio.” O presidente do sindicato, Sergio Nobre, afirma que “há espaço para convergência em todos os pontos discutidos entre empresa e sindicato, afinal, somos beneficiados pelos investimentos das companhias, então não podemos ser entraves, ao contrário.”

Nas duas salas de Comitê Sindical de Empresa (CSE) em São Bernardo do Campo e Diadema, da Ford e da IGP, respectivamente, os integrantes dos comitês dispunham de boa infraestrutura: mesa, computador, telefone, máquinas de café e água, além de móveis para arquivo e documentos. Na Ford, o comitê é todo decorado com motivos do PT, enquanto que na IGP, a sala era improvisada, uma vez que a operários trabalhavam na construção de um espaço autônomo, e maior, para a instalação do comitê.

Empregados e empresários, na pequena IGP, dividem o mesmo bandejão, que na quarta-feira serve rabada e costela de porco, acompanhada de arroz à grega, feijão, batatas e salada de folhas verdes. Na Ford, durante a visita da reportagem à linha de montagem, o gerente de fábrica chegou a parar a comitiva para destacar que um operário, em meio aos outros 3.088 metalúrgicos na unidade, era o pai do jogador Lucas, da seleção brasileira de futebol e do São Paulo Futebol Clube. O metalúrgico, que não poderia deixar suas funções de lado, acenou de longe.

Essa relação, que diverge da veia socialista da fundação da CUT, que previa “interesses inconciliáveis entre patrões e empregados”, é mal vista por sindicalistas da esquerda. O Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, filiado desde 2005 à Conlutas, central ligada ao PSTU, formada após um racha na CUT, é crítico à política sindical do ABC. O sindicato não mantém negociações com a única montadora no município, a General Motors (GM).

Segundo Vivaldo dos Santos, presidente do sindicato, os comitês sindicais instalados no ABC não são independentes. “Eles só defendem os interesses das empresas, há toda uma cumplicidade entre patrões e empresários lá”, diz Santos, que vê interesses inconciliáveis entre as partes. “Os patrões precisam nos atacar para ampliar o lucro, e nós precisamos atacá-los para aumentar nossos benefícios, então não há espaço para harmonia, apenas para conflitos”, afirma o sindicalista, para quem as negociações com a GM, são “e devem ser” mínimas.

Experiência nasceu na Cobrasma, em Osasco 
Quando as tropas invadiram as metalúrgicas de Osasco (SP), em junho de 1968, para debelar as primeiras greves sindicais desde o início do governo militar, as primeiras experiências de comissões sindicais eram o centro do movimento. Fundada em 1965 pelo operário José Ibrahim, então com 18 anos, a primeira comissão de fábrica, na Cobrasma, em Osasco, ainda era ilegal. O Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco estava sob intervenção do regime militar. Ibrahim criou a comissão, que passou a representar os funcionários. A empresa o reconheceu em 1966 e, no ano seguinte, Ibrahim venceu as eleições no sindicato. Sob sua presidência, a categoria entrou em greve em junho de 1968.

“Paramos 22 mil trabalhadores em Osasco, onde já tínhamos desenvolvido uma série de comissões de fábrica, sendo três delas legalizadas, ou seja, reconhecidas pelas empresas como “braços” do sindicato para negociação direta”, diz Ibrahim. As tropas do governo não só debelaram o movimento e afastaram os diretores do sindicato, como desativaram as comissões. Ibrahim ingressou na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), movimento de luta armada, e foi preso em fevereiro de 1969. Ibrahim fez parte do grupo de 15 presos políticos liberados pelo regime em setembro de 1969, em troca da soltura do embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado pelo grupo MR-8.

Sobre o modelo defendido atualmente pelos metalúrgicos do ABC, Ibrahim é direto: “Os sindicatos devem mesmo ampliar os canais de negociação direta com as empresas, mas o projeto, para ser ampliado, deve levar em consideração que a maior parte dos sindicatos não goza da mesma organização que eles.”

Do Valor Econômico (João Villaverde)