Entrevista|Ferréz – O recado da perifa

A literatura de Ferréz é respeitada na quebrada, mas vende mais na Fnac do que no Capão Redondo. Para ele, uma biblioteca pode mudar a vida de um sem-rolex, mas o "outro lado" ainda não entende isso.


 

Um dia o caldo entorna

A literatura do escritor e rapper Ferréz conquistou o respeito da periferia e tem a classe média como maior consumidora. Mas ele alerta: “o outro lado” não sabe nada da “quebrada”. E sem um entendimento, em breve a periferia terá mudado tanto que nem ele mais vai poder falar

Por Tom Cardoso e Xandra Stefanel

A polêmica é conhecida: Luciano Huck escreveu artigo na Folha de S.Paulo queixando-se da violência paulistana e do Rolex roubado. Ferréz, escritor, morador do Capão Redondo, escreveu em seguida, no mesmo jornal, que diante do caos social todos saíram ganhando, “o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio”. O texto, peça ficcional do ponto de vista do “correria”, não foi iniciativa de Ferréz, mas um pedido do jornal, embora nem o ombudsman da Folha pareça ter sido informado disso. De lá para cá, Huck foi capa da revista Época, recebeu elogios por manter uma ONG, a promessa do delegado de que o assaltante seria preso, julgado e condenado, e um empresário, solidário, se prontificou a presenteá-lo com um novo Rolex. Do outro lado da cidade, Ferréz segue a vida sem mimos. Nada que tire o ânimo do escritor, que começou a escrever contos e poesias ainda garoto, enquanto vendia vassouras, e hoje é uma espécie de embaixador cultural do Capão Redondo. Autor de sucesso com Capão Pecado, Manual Prático do Ódio, Ninguém É Inocente em São Paulo, Inimigos não Mandam Flores e Amanhecer Esmeralda, é comerciante bem-sucedido e criador da 1DASUL, marca de roupa produzida exclusivamente no bairro. Três reuniões com empresários foram imediatamente canceladas. Até a conversa com a Revista do Brasil, em 18 de outubro, nenhum repórter o havia procurado. E não se deslumbra. Trabalha duro vendendo bonés, camisetas e mochilas e juntando idéias para seu próximo romance. Em meio à polêmica, algumas portas se fecharam em sua missão de batalhar patrocínio e espaço para um programa de televisão. Quer entrevistar personalidades no próprio Capão. Mas, as caras habituadas a freqüentar as capas de revistas de “celebridades”, nem pensar: “Um cara que monta uma ONG cretina dessa para ganhar ibope e ainda se prevalece sobre a ONG não é exemplo pra mim”, avisa. “Tem gente do outro lado que é legal, tem consciência, tem um pé aqui.”

Você saiu prejudicado da polêmica com o Luciano Huck?
A gente quer fazer um programa de televisão e está com o piloto. Eu tinha três reuniões importantes marcadas que foram desmarcadas. A conversa, o diálogo que eu tinha do lado de lá, acabou tudo. Tinha duas emissoras que iam conversar comigo e me cortaram.

Você entrou em contato com o Luciano Huck em algum momento?
Nem quero. Um cara que faz meu povo subir numa latinha, ficar se equilibrando para poder pagar dívida e que dá valor para um homem por jogar argola nos bagulhos não é um exemplo que eu quero conhecer, não. Um cara que monta uma ONG cretina dessa para ganhar ibope e ainda se prevalece sobre a ONG não é exemplo pra mim. Tem muita gente melhor que eu quero conhecer.

Você começou a ler e escrever aos 7 anos. Vê isso acontecendo aqui no Capão Redondo e na periferia como um todo?
Não do jeito que eu queria que fosse. Pouca criança escreve, poucas lêem. Como que uma criança vai gostar de ler se a escola não passa uma matéria direito e se o amor à literatura não é dado? Eu sou uma exceção.

Seu primeiro livro esgotou em um mês. A que credita esse sucesso, quem é seu público?
Nunca tinha sido feito nada para eles, tá ligado? Se você queria ler sobre esse mundo, não encontrava nada. Porteiro, cobrador começaram a ler por causa disso. Eu tenho muito público da classe alta, da classe média – meu livro vende muito mais na Fnac que em outros lugares – e tem o público aqui da quebrada, a periferia.