Entrevista Sérgio Nobre à Revista Livre Mercado

Abaixo a Íntegra da entrevistra que Sérgio Nobre concedeu à Revista Livre Mercado, publicada na edição de junho sob o título: Chineses não vão suportar mudanças. Na entrevista, Sérgio Nobre fala da história, lutas e conquistas do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Fala sobre economia, industrialização e a indústria chinesa.

LivreMercado — Numa projeção de médio e de longo prazos, o que o senhor imagina como perfil do metalúrgico das montadoras de veículos no Grande ABC? As mudanças que ocorreram já foram metabolizadas e não há mais nada praticamente a ser alterado ou a ameaça chinesa tem de ser levada em conta?

Sérgio Nobre — Para falar desse perfil futuro, é imprescindível, antes, fazer uma contextualização histórica e resgatar o passado recente da categoria metalúrgica. De 1959 a 1990, vigorava no Brasil o modelo fordista de produção, caracterizado por fábricas totalmente verticalizadas, elevado número de funcionários pouco qualificados profissionalmente dentro de um processo produtivo muito fragmentado. A partir dos anos 1990, a abertura à produção internacional deu origem à competição de mercado que levou as montadoras brasileiras a buscar novo modelo de produção baseado na experiência da Toyota, no Japão. Tal modelo exigia profissional polivalente, habilitado a executar muitas tarefas diferentes e a conhecer o processo de produção como um todo, trabalhar em equipe e, assim, se antecipar aos problemas. As montadoras também passaram a buscar um trabalhador mais jovem e com elevada qualificação garantida por cursos técnicos e até de idiomas. Naquela época, paralelamente, houve redução drástica do número de postos de trabalho no ABC em conseqüência da combinação de dois fatores principais: a recessão provocada pela introdução pelo governo federal de políticas e novo processo de produção enxuta. Diante desse quadro, foi e segue sendo um grande desafio para o movimento sindical a defesa do emprego com qualidade e contrapartidas. A luta por boa remuneração, boas condições de trabalho e representação sindical dentro da empresa para garantir negociação permanente, por meio das comissões de fábrica. Quanto às mudanças, elas constituem um processo permanente e, na medida em que vão sendo metabolizadas, surgem novas questões a debater, negociar e digerir. No caso da China, entendo o seu modelo de produção como insustentável, porque a competitividade chinesa se alicerça não só na mão-de-obra farta e barata, mas em outros fatores, como incomparável escala de produção. Esse país asiático não tem como se manter nos atuais níveis de crescimento porque não haverá recursos naturais para supri-lo – matéria-prima, insumos – nem o Planeta suportará o impacto desse crescimento. Além disso, a história vem provando que os trabalhadores, quando submetidos a um sistema que concentra milhares de pessoas submetidas a péssimas condições de trabalho, salários miseráveis e opressão política, acabam dando um jeito de se rebelar e mudar a realidade. A China não pode ser referência para nenhum país. A luta histórica dos trabalhadores tem de ter como referencial um modelo de produção justo, democrático, que respeite o meio ambiente, pague salários dignos e garanta condições de trabalho satisfatórias. No Brasil de hoje, ainda temos um longo caminho a percorrer para a construção desse modelo positivo, mas muito já foi conquistado e não podemos abrir mão de buscá-lo, nunca. Não somente o movimento sindical, mas empresários e governos têm de refletir sobre que país queremos para nossos filhos e netos. Será o atual padrão da China? Com certeza não.

LivreMercado — Como o senhor avalia uma declaração histórica de Lula da Silva já presidente da República, que se penitenciou por ter visto, como todo sindicalista ou empresário, o mundo corporativo, no caso de chão de fábrica, e não se ter apercebido do mundo exterior, da sociedade como um todo? O trabalhador metalúrgico de hoje é menos corporativista do que foi nos tempos de seus antecessores?

Sérgio Nobre — A principal missão do sindicato é defender os interesses da sua categoria, e os Metalúrgicos do ABC nunca se limitaram a esse único papel. A história do movimento sindical no ABC prova isso em marcos como a greve de 1978, que deu origem ao novo sindicalismo e à luta pela democracia e contra a opressão do regime militar. Essa batalha não foi apenas em favor dos metalúrgicos, mas em prol de todo o povo brasileiro. O sindicato nunca fez nada olhando apenas para o seu próprio umbigo, sempre olhamos para o Brasil e para o mundo. O sindicato historicamente combina com muita competência as duas ações – para dentro e para fora da fábrica. Prova disso é a nossa efetiva participação nas Câmaras Setoriais e na Câmara Regional do ABC. O sindicato nunca abriu nem abrirá mão de ações no chão de fábrica, mas também não deixou nem deixará de participar das lutas sociais e democráticas, porque não optamos em fazer essa ou aquela ação, fazemos as duas. Lutamos por melhorias para a categoria e também para mudar as condições sociais gerais dos trabalhadores. O sindicato não é uma ilha, porque o trabalhador não vive dentro da fábrica e, além de ter emprego e boas condições no local de trabalho, precisa morar bem, ter acesso a saúde, educação, lazer, ao pensar livre e a outros direitos básicos e inalienáveis que garantam sua inclusão social.

LivreMercado — O senhor faz parte do grupo que nega a desindustrialização do Grande ABC porque supostamente haveria rescaldo de participação sindical no processo, conforme afirmam os mais conservadores, ou entende que não há outro verbete para definir o que ocorreu nos anos 1990, principalmente durante o governo Fernando Henrique Cardoso?

Sérgio Nobre — Quando a indústria automobilística chegou de fato no Brasil, na década de 1950, havia a crítica de ela trazia uma tecnologia ultrapassada e um modelo de desenvolvimento baseado no capital internacional sem contrapartidas para o País. Não foi bem assim. O governo Juscelino Kubitschek exigiu, sim, tal contrapartida, que foi traduzida no surgimento de fábricas nacionais de componentes. Surgiu, dessa contrapartida, um parque industrial genuinamente nacional no ABC, que garantiu uma cadeia de fornecedores às montadoras com nomes como a Metal Leve e a Cofap, entre tantos outros. Nos anos 1990, com os governos neoliberais de Collor e FHC, que promoveram abertura da economia da noite para o dia de forma indiscriminada e ideológica, aliada à idéia de um Estado mínimo que priorizava as privatizações, esse parque foi quase dizimado – empresas foram fechadas ou anexadas e compradas por grupos transnacionais. Quem sobreviveu acabou migrando para o mercado marginal.

A desintridustrialização só não foi maior, mais destrutiva, por conta da ação e luta dos sindicatos, que competentemente aglutinaram forças de vários atores, partidos políticos, governos municipais e estadual garantindo, assim, ações que favoreceram a manutenção de empresas e empregos no ABC. Eu começava no movimento sindical e me lembro muito bem de uma previsão, diria até um axioma, recorrente à época: que o ABC iria virar uma nova Detroit; que o parque industrial cederia ao setor terciário, com salários mais baixos, o que não se confirmou. De 2003 a março de 2008, após de cinco anos de governo Lula, o índice de novos postos de trabalho no ABC (base do sindicato) superou os 26,5% de crescimento. Logo chegaremos aos 100 mil trabalhadores, porque revertemos o processo ao convencer a sociedade brasileira que o País não podia abrir mão de uma política industrial e da importância da vocação industrial do ABC. Mais que isso: o sindicato convenceu a população que o Brasil precisava mudar de rumo, deixar para trás a política neoliberal que tantos estragos fez na economia e na sociedade. Convencimento que elevou Lula, um metalúrgico do ABC, à Presidência da República.

LivreMercado — Há pontos ideológicos que o separam dos dirigentes que o antecederam no cargo?

Sérgio Nobre — A matriz ideológica é a mesma. A forma de gestão pode até passar por alterações, mas os princípios de todos os dirigentes do sindicato e dos presidentes que me antecederam preservaram esses valores. Farei o mesmo. A forma de atuação muda porque a realidade não é estática nem somos presos a dogmas. O sindicato tem a importância que tem porque a categoria sempre foi forte, organizada e preservou os seus princípios básicos e históricos, entre eles a combatividade, honestidade e perseverança. Na época em que Lula e Jair Meneguelli presidiram o sindicato, a conjuntura exigia uma luta pela conquista da democracia e do direito à organização no local de trabalho; de Vicentinho a Luiz Marinho passando por Feijóo, os presidentes tiveram de batalhar pela defesa da Região, do emprego, da manutenção das empresas, além de lutar contra o modelo neoliberal que desindustrializou e precarizou o parque industrial da Região. Agora, a nossa luta tem outra dimensão e foco: consolidar o processo em curso de inclusão social, aumento do emprego com qualidade e a busca do tão sonhado bem-estar social dentro e fora da fábrica. A nossa agenda tem seguir priorizando as bandeiras da saúde, educação, transporte, saneamento básico, combate à violência e à discriminação seja por raça, sexo e condição social. Não podemos permitir que volte a ocorrer a tragédia do chamado “milagre econômico”, da ditadura, quando a economia brasileira registrou taxas elevadas de crescimento às custas da miséria e opressão do povo. Era um crescimento desigual, concentrado no Sudeste e que não beneficiava todas as regiões do País. Esse modelo provocou o deslocamento da população das regiões mais pobres Brasil, obrigando pessoas, que alijadas do processo, se amontoaram nas periferias das grandes cidades em condições degradantes cujas soluções, ainda hoje, representam um desafio para a nossa sociedade. Hoje, sob Lula, a economia cresce e é tarefa dos movimentos sindical e social vigiar, pressionar e lutar para garantir que todo o povo e seja beneficiado por esse crescimento. O caminho é avançar na distribuição de renda e olhar para fora da fábrica, olhar o trabalhador como um todo, como cidadão que precisa ter boas condições de vida em todos aspectos. Investir na solidariedade para enfrentar uma sociedade que endeusa o individualismo e estimula a competição fratricida entre pessoas, fábricas e países. Em um ambiente onde não há solidariedade, também não há espaço para lutas sociais e sem elas não há direitos novos, nem a sociedade não se democratiza ou se desenvolve. Cito o escritor indiano Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, que em seu livro “Desenvolvimento como Liberdade”, mostra que é a busca das pessoas pelas liberdades e direitos sociais que levam ao desenvolvimento sustentável.

LivreMercado — Há pontos metodológicos de gestão da categoria que o diferenciam dos antecessores?

Sérgio Nobre — O sindicato tem uma longa tradição de gestão democrática nas questões envolvendo os interesses da categoria. Os temas gerais são sempre decididos em assembléias e os mais pontuais, localizados, de interesse de uma determinada fábrica, são debatidos com o trabalhador interessado. O presidente e a diretoria Executiva seguem esse processo democrático de participação. É o que farei. Nosso método de gestão é vitorioso, não há por que mudar.

LivreMercado — O senhor acredita que ainda haja disputa ideológica surda entre os liberais e os trabalhistas, os adoradores do mercado e os defensores do Estado forte, ou prevalece mesmo o pragmatismo chinês de mão de ferro na política e guerra de guerrilhas na economia?

Sérgio Nobre — A crise americana do subprime é prova de que não é verdade que o mercado resolve todas os problemas, como as potências tentaram nos fazer acreditar. Por que não deixaram o mercado resolver a crise americana? Por que sabiam que sem intervenção forte do Estado a economia entraria em forte recessão, Essa visão de Estado mínimo provocou muitos desastres no Brasil e na América Latina do ponto de vista econômico e social, como a desindustrialização e precarização das condições de vida da população. Indicadores econômicos mostram que o desenvolvimento dos países avançados recuou em governos neoliberais. O que impulsiona o crescimento de um país é a busca das pessoas pelo bem-estar social, educação, saúde, liberdade de expressão. Existe uma diferença, um abismo, entre Estado forte e Estado autoritário. O Estado tem o papel de promover igualdade social, garantir o desenvolvimento, e isso não é um erro. Em um país como o Brasil, que tem uma dívida social imensa acumulada desde seu “descobrimento”, não será um Estado desestruturado que assegurará uma vida digna e merecida pela população.

LivreMercado — As pequenas e médias autopeças familiares do Grande ABC praticamente desapareceram por conta da abertura econômica dos anos 1990. O senhor acha possível a recuperação desse tecido socioeconômico ou vivemos inexoravelmente num mundo de grandes players industriais do setor automotivo?

Sérgio Nobre — Conquistar essa recuperação é um grande desafio, mas que depende muito da consciência dos grandes empresários de entender que as pequenas empresas devem ser tratadas como suas parceiras, numa relação de apoio e não de superexploração. Em países desenvolvidos, isso já é realidade, grandes empresas não sugam seus fornecedores, ao contrário, dão todo o apoio necessário para que atinjam padrões de qualidade e produtividade desejados e evitar risco à cadeia produtiva. No Brasil, em vez de apoiar e ajudar a desenvolver os parceiros, as grandes indústrias forçam seus fornecedores a se precarizar cada vez mais, não cooperam. O que ocorre hoje é a superexploração, a transferência de custo. Você olha para a cadeia produtiva e ela vai ficando cada vez mais precária. A mudança dessa realidade não depende só de políticas industrias, mas das relações entre as empresas. O sindicato tem esse diagnóstico e, diante dele, estamos chamando a atenção dos setores, nos fóruns competentes dos quais participamos, para essa relação destrutiva.

LivreMercado — Como o senhor observa o fato de que cada vez mais os salários de pequenas e médias metalúrgicas se desgarram das montadoras e mais se assemelham à média de rendimentos de indústrias localizadas em outras áreas geográficas, como o Interior paulista?

Sérgio Nobre — No setor metalúrgico, os salários são negociados em âmbito estadual, negociações que ocorrem na data-base da categoria (setembro) e que são conduzidas pela Federação Estadual dos Metalúrgicos (da CUT), entidade que congrega 14 sindicatos, entre eles Taubaté, Sorocaba, Itu, Cajamar etc, representando 250 mil trabalhadores. A nossa convenção coletiva estabelece em âmbito estadual todos os direitos sociais e o piso salarial, por isso remuneração e benefícios são semelhantes na categoria no Estado de São Paulo, mas em algumas cidades do interior o piso salarial é muito praticado. No caso dos Metalúrgicos do ABC, a maioria das empresas paga acima do piso salarial. É bandeira do movimento sindical, porém, o nivelamento por cima dos salários e benefícios não só no Estado como em todo o País. Se os preços dos automóveis produzidos em diferentes Estados da Federação são iguais, não tem razão de haver diferença salarial. Vale lembrar que poucas categorias conseguem esse tipo de negociação com alcance estadual. Nos últimos cinco anos, o salário da categoria ficou 16,5% acima da inflação.

LivreMercado — Como conciliar a possibilidade de redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais com a concorrência internacional sem maiores preocupações com direitos trabalhistas, caso dos asiáticos, principalmente de chineses? Não entraríamos numa disputa desigual?

Sérgio Nobre — Na nossa base (São Bernardo, Diadema, Mauá e Ribeirão Pires), mais de 70% dos 97,6 mil metalúrgicos já conquistaram jornadas inferiores a 44 horas semanais, sem redução de salário. A meta é atingir 100%. Na Europa, há jornadas de 35 horas e a produção segue competitiva porque há investimentos em tecnologia e capacitação. Insisto e repito: o modelo chinês não serve para país nenhum, nem mesmo para os chineses. É um retrocesso fadado ao fracasso e à convulsão social. A rebelião dos trabalhadores contra as precárias condições de trabalho e de salários colocarão esse modelo em xeque. É possível, sim, garantir ao mesmo tempo qualidade na produção e na vida do trabalhador mantendo a competitividade com direitos a salários dignos e democracia, desde que haja investimento no desenvolvimento tecnológico, acompanhado de contrapartidas sociais.

O modelo neoliberal historicamente usou paradigmas negativos para chantagear os trabalhadores na tentativa de rebaixar os direitos dos trabalhadores. Primeiro foi o Leste Europeu, por conta da queda do Muro de Berlim, quando as empresas ocidentais ameaçavam transferir suas fábricas para Polônia, Romênia entre outros países, caso os trabalhadores não aceitassem ter ser direitos reduzidos. Nos Estados Unidos, outro exemplo negativo, os sindicatos americanos foram chantageados pela ameaça de êxodo das indústrias para o México. E agora a China é a bola da vez. Queremos uma sociedade desenvolvida e com justiça social, portanto, temos que recusar esse tipo de chantagem e utilizar parâmetros positivos de comparação.