Estadão censura a colunista Maria Rita Kehl
Por Altamiro Borges, no Blog do Miro
No final da noite desta terça-feira (5) circulou a notícia de que o jornal O Estado de S.Paulo teria demitido a renomada psicanalista Maria Rita Kehl, articulista do diário. Agora, o jornalista Xico Sá informa que “o Estadão não demitiu Maria Rita Kehl, mas exige que ela não escreva mais sobre política. Só psicanálise. Quem explica, Dr. Freud?”. A confirmar qual é versão verdadeira!
Mas, como diz o ditado, “onde há fumaça, há fogo”. Tenha ela sido demitida ou censurada, isto só prova o cinismo dos barões da mídia, que vivem esbravejando sobre a liberdade de expressão e criticando a censura – principalmente para fustigar o governo Lula e para colocar na defensiva os mais vacilantes. Como já ensinou Cláudio Abramo, “a liberdade de imprensa só existe para os donos dos jornais”. O resto é pura bravata sobre neutralidade, imparcialidade e democracia.
Espaço só para colunista da direita
A perseguição à psicanalista teria como motivo artigo publicado por ela na véspera da eleição. O Estadão parece que só aceita colunistas da direita, ligados à seita fascista Opus Dei, ao Instituto Millenium ou aos saudosos da ditadura militar. O artigo de Maria Rita Kehl, intitulado “Dois pesos”, era até cauteloso e, inclusive, fazia elogios ao próprio Estadão. Vale ser lido e relido:
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.
Eugênio Bucci tem algo a dizer?
Ao estimular a reflexão crítica, principalmente da “classe média” emburrecida pela manipulação midiática, Maria Rita Kehl virou alvo da sanha autoritária da famíglia Mesquita. A máscara do Estadão, já borrada por inúmeros outros episódios, caiu de vez. Seu discurso sobre liberdade de expressão é falso, hipócrita. Os barões da mídia confundem “liberdade de imprensa” com liberdade de empresa, dos monopólios, para enganar os ingênuos. Confirmada a perseguição à altiva psicanalista, é urgente o repúdio do Sindicato dos Jornalistas e das entidades democráticas.
Em tempo: Em 2004, a Boitempo Editorial publicou o excelente livro “Videologias”, de autoria de Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci. A psicanalista manteve-se na trincheira, refletindo sobre os riscos da manipulação midiática. Já o jornalista hoje é badalado pelos barões da mídia, fazendo críticas ao governo Lula, do qual inclusive fez parte no primeiro mandato. Para ele, Lula é hostil à liberdade de expressão. Perguntar não ofende: ele também será duro na crítica ao Estadão e prestará solidariedade a Maria Rita Kehl?