Estudo reforça elo entre trabalho infantil e trabalho escravo
As conexões do trabalho escravo tanto com o trabalho infantil quanto com as limitações da política de reforma agrária foram reforçadas por estudo que traçou os perfis dos atores envolvidos no trabalho escravo, lançado na última terça-feira (25) pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Entrevistas realizadas com 121 libertados de dez fazendas no Pará, Mato Grosso, Bahia e Goiás, entre outubro de 2006 e julho de 2007, mostraram que praticamente todos (92,6%) começaram a trabalhar antes dos 16 anos de idade. A idade média do início na “vida profissional” dos consultados ficou em apenas 11,4 anos. Cerca de 40% começaram ainda antes disso.
A atividade inicial da maioria (69,4%) dos entrevistados se deu em âmbito familiar, mas uma parcela significativa de 30,6% enfrentou logo de cara o trabalho diretamente subordinado a um patrão (20,6% de maneira como empregado individual e 10% juntamente com a família).
Quanto às possíveis soluções para a melhoria das condições de vida, os próprios trabalhadores apontaram a “terra para plantar” como primeira opção (46,1%). Apontado como solução por 26,9%, o comércio na cidade apareceu como segunda escolha mais citada. O emprego rural registrado em carteira veio apenas em terceiro lugar (13,5%), proporção idêntica aos que optaram por um emprego registrado na cidade (13,5%). Também foi registrada a preferência das vítimas consultadas pelas atividades realizadas por conta própria (73%) em detrimento do trabalho assalariado (27%).
“Do ponto de vista das políticas públicas, o que se verifica é que a reforma agrária, assim como políticas e programas de apoio à agricultura familiar poderiam responder ao anseio de uma parcela significativa de trabalhadores”, destaca o estudo intitulado “Perfil dos principais atores envolvidos no Trabalho Escravo Rural no Brasil”, realizado por pesquisadores e pesquisadoras que colaboram com o Grupo de Estudo e Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPTEC/UFRJ).
A ausência de meios concretos para emancipação como a terra recebeu o complemento de outro dado alarmante do estudo: a maioria dos libertados (59,7%) anunciou já ter enfrentado, em ocasiões anteriores, situações que contribuem para a caracterização do trabalho escravo como a privação da liberdade por meio de guardas armados, de ameaças e violência física, da cobrança de dívidas ilegais e do isolamento geográfico, que praticamente impossibilitavam a livre circulação dos empregados. Dos 121, porém, apenas 12,6% já tinham sido efetivamente libertados no passado.
Geografia, idade, cor e formação
Outra forte associação confirmada pelo levantamento foi a do trabalho escravo com a pobreza, especialmente em regiões marcadas pela exclusão e pela falta de oportunidades na Região Nordeste. Entre os resgatados que moravam nas Regiões Norte e Centro-Oeste, 21,5% declararam receber uma média mensal inferior a um salário mínimo (R$ 545). Entre os que viviam na Região Nordeste, esse mesmo índice alcançou 55,5%.
A renda média mensal declarada pelos trabalhadores foi de 1,3 salários mínimos. Entre os trabalhadores, 40,5% disseram receber até um salário mínimo e 44,8% se colocaram na faixa entre um e dois salários mínimos. Em 40,2% dos casos, o entrevistado era o único responsável pela renda da família que, em média, era formada por um grupo de 4,4 pessoas.
Os autores da pesquisa sublinham, porém, que os libertados tinham dificuldade de responder de forma precisa às perguntas relativas à sua renda. “Alguns informavam sobre o que haviam ganho no momento, outros procuravam fazer uma média. Para auferir com mais rigor os rendimentos familiares, seria necessário realizar um estudo específico”, colocam.
O Nordeste também ganha destaque no que se refere ao local de nascimento dos libertados. Dos entrevistados, 77,6% nasceram na região, com forte participação de maranhenses (41,2%). O Centro-Oeste veio em segundo (8,3%), seguido pelo Norte (5,0%), Sul (5,0%) e Sudeste (4,1%). Não por acaso, 61% dos entrevistados confirmaram ter deixado seu local de nascimento para viver em outro lugar, o que ajudou a selar a migração como parte constitutiva da história da maior parte dos resgatados – 32,2% declararam ter migrado para outras regiões do país, 21,4% para outros municípios do mesmo estado e 7,4% para outros estados da mesma região.
A idade média dos entrevistados ficou em 31,4 anos, com predominância (52,9%) de homens com menos de 30 anos. A maioria (81%) se autodenominou como não brancos, dos quais 18,2% se apresentaram como pretos, 62% como pardos e 0,8% como indígenas. A proporção de libertados não brancos foi significativamente maior do que a da população brasileira (50,3%), a da Região Norte (76,1%) e a da Região Nordeste (70,8%) – conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A escolaridade dos trabalhadores pesquisados também se mostrou extremamente baixa: 18,3% eram analfabetos e 45% se encaixavam na categoria de analfabetos funcionais. O tempo médio de estudo dos libertados foi de 3,8 anos, e 85% deles nunca fizeram qualquer curso profissional.
“Gatos” e proprietários rurais
Em relação aos chamados “gatos” que atuaram nas fiscalizações do grupo móvel acompanhadas pelos pesquisadores, o estudo, a despeito do universo reduzido de apenas sete entrevistados, ratificou a semelhança entre os perfis dos agenciadores de mão de obra e os próprios trabalhadores.
Cinco dos sete se autoclassificaram como não brancos e a idade média foi de 45,8 anos. A maioria veio do Nordeste, possui baixa escolaridade (dois se declararam analfabetos), e foi vítima de trabalho infantil. Nenhum fez curso profissional. Todos realizaram trabalho rural não especializado no passado – como roço de juquira (“limpeza” para a formação de pasto para a pecuária), derrubada de árvores e catação de raízes -, que vem a ser justamente o tipo de empreitada para a qual recruta mão de obra destinadas a cumprir tarefas para médios e grandes proprietários rurais.
Dois gatos entrevistados já haviam sido flagrados anteriormente pela fiscalização como empreiteiros de trabalhadores em situações caracterizadas como trabalho escravo, um no estado do Pará e outro em Goiás.
“A pesquisa revelou que o recrutamento e a contratação de mão de obra para o trabalho em condições análogas à escravidão têm sofrido transformações, provavelmente em razão do trabalho de fiscalização realizado pelo Grupo Móvel (GEFM) e da repressão do tráfico de trabalhadores”, identificou a pesquisa. As funções anteriormente desempenhadas pelo “gato” (aliciamento, contratação e controle da força de trabalho) têm sido assumidas por outros agentes – como os próprios trabalhadores (forma facilitada pelos avanços das estradas, dos meios de transporte e dos canais de comunicação), os gerentes das fazendas, os próprios proprietários e terceirizadas. Entretanto, salientaram os autores, “as mudanças não necessariamente melhoram as condições de trabalho, alimentação e alojamento dos trabalhadores temporários”.
Assim como no caso dos “gatos”, a pesquisa com proprietários também abarcou uma quantidade reduzida: a despeito dos 66 contactados que se envolveram em casos de escravidão e entraram para a “lista suja” do trabalho escravo, apenas 12 aceitaram participar diretamente do estudo. A maioria era formada de branca, com idade média de 47,1 anos, nasceu na Região Sudeste e reside atualmente nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que abrigam os principais focos de expansão da fronteira agropecuária e do agronegócio.
Nove dos 12 têm ensino superior completo e dois concluíram cursos de pós-graduação. Apenas dois dos não participavam de sindicatos patronais ou de associações setoriais. Oito possuiam grandes propriedades, com área entre 1,5 mil a 17 mil hectares. Um deles declarou ter 5 mil cabeças de gado bovino. A maioria utilizava tecnologias de ponta ou padrões tecnológicos intensivos. Apenas um era médio proprietário (600 hectares de terra).
Segundo o estudo, vários dos proprietários entrevistados afirmaram que recorriam antes aos serviços de “gatos”, mas, com a presença da fiscalização,
passaram a não utilizar mais esses serviços. Afirmaram que, após os flagrantes, estão dando mais atenção ao processo de contratação da mão de obra, de acordo com as normas legais. Anunciaram também que estão reduzindo a contratação da mão de obra temporária, dando margem a terceirizações, e aumentando a mecanização da atividade produtiva.
Observações e recomendações
Os autores frisaram que, a despeito da quantidade de dados, a pesquisa não pretendeu ter representação estatística, “uma vez que está baseado principalmente em uma metodologia qualitativa”. O lançamento foi realizado no I Encontro Nacional das Comissões Estaduais para a Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil, em Cuiabá (MT), com a presença da Diretora do Escritório da OIT no Brasil, Laís Abramo, e do Coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo do mesmo óirgão, Luiz Machado.
Entre as recomendações, estão: a manutenção e ampliação da operações de fiscalização; a punição dos escravagistas e intermediários; a disseminação de campanhas educativas sobre o tema; o incentivo e a exigência para que empregadores assegurem condições de trabalho decente.
Além da reforma agrária, é ressaltada a necessidade de ampliar outras ações preventivas, tais como programas de qualificação profissional e a elevação da escolaridade nas áreas de concentração de trabalhadores escravos; a geração de novos postos de trabalho nos municípios de origem e residência dos trabalhadores. “Considera-se ainda importante manter registros e análises sistemáticas sobre os principais atores envolvidos no problema de forma a aprofundar o conhecimento da questão”, emenda o estudo.
Do Repórter Brasil